Fonte: Manchete, de 24/02/1962.
Machado de Assis, o artista mais sério que já houve no Brasil, foi um burocrata perfeito (um burocrata perfeito é quase o contrário de um perfeito burocrata). Carlos Drummond de Andrade, o poeta mais sério do Brasil, encerrou há pouco, aposentado, a sua carreira de burocrata perfeito. Os dois se parecem muito na reserva, no pudor, na ironia, no humour, na dignidade pessoal, na elisão sistemática de semostração pública. Literariamente, Machado de Assis deu inteligência à prosa brasileira; Drummond de Andrade deu inteligência ao verso. Esses dois homens magros e reticentes são dois monstros de energia na luta contra o nosso subdesenvolvimento intelectual.
Este texto não é um artigo de crítica, mas uma notícia jornalística. Ora, se o crítico deve possuir um sentido muito desenvolvido dos fatos, que se dirá do jornalista!
Alguns dos fatos são estes: Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, no ano de 1902. “Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa... Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!”
Para quem sabe ler, um poema basta. Já aqui se estampa o essencial: o perfil nítido e severo do homem e a alma difusa e intranquila do poeta.
Expulso de um ginásio, por “insubordinação mental” (não pode existir melhor definição de escritor), o inesperado depois acontece: o poeta cola grau em Farmácia.
Em 24 de fevereiro de 1922 (ué, eu ia nascer daí a quatro dias), a Ilustração Brasileira publicava a seguinte nota: “Carlos Drummond de Andrade é um dos novos escritores mineiros que, como tantos outros da sua geração, estreou feito, com um modo pessoal de sentir e contar as coisas. Esta página prova bem o que dizemos.”
A página nunca foi republicada pelo autor, como não o foram alguns poemas aparecidos na mesma revista. Naquela mesma época, realizava-se tumultuosamente em São Paulo a “Semana de Arte Moderna”, que seria vinculada por Getúlio Vargas, uns 30 anos depois e via Lourival Fontes, à Revolução de 1930. Durante os twenties, ao contrário do que se passava nos Estados Unidos, o Brasil era triste, São Paulo era triste, Belo Horizonte era triste. Nesta última cidade (a mais peripatética do mundo, me disse uma vez Pedro Nava) morava o insubordinado mental Carlos Drummond de Andrade.
A novidade de Minas eram os bondes e os moços: Drummond, Nava, Emílio Moura, Milton Campos, João Alphonsus, Abgar Renault, Afonso Arinos de Melo Franco... Conta este último em seu livro de memórias: “Minha convivência mais chegada era, então, com João Alphonsus e Carlos Drummond de Andrade. O grande, o altíssimo poeta, servia como redator-chefe do jornal do PRM, o velho Diário de Minas, que parecia uma espécie de mensagem espírita. Digo isso porque era ainda composto e impresso sem linotipos nem rotativa: ninguém, ou quase ninguém, o lia, e tinha, contudo, influência política. Carlos Drummond de Andrade dominava soberanamente a redação. João Alphonsus e eu obedecíamos docilmente às suas ordens e instruções. Carlos, com aquele senso de organização e aquela eficiência burocrática que se tornaram conhecidos no Ministério da Educação, distribuía tarefas, fiscalizava horários, tomava a sério a sua função, o que nos obrigava a fazer o mesmo com as nossas. Nessas coisas é que a gente sente o homem que coexiste com o grande poeta, e que com ele se ajusta tão perfeitamente, sem que ninguém prejudique o outro. Equilíbrio extraordinário este, entre o homem Drummond e o poeta Drummond. O poeta sempre tendendo a arrebentar e ironizar o mundo em que o homem se integra, em cujos melhores aspectos o homem se integra. O mais interessante é que não há dois Carlos, um negando o outro, senão que um só Carlos, que exprime solidariamente a contradição da vida e do mundo. Em todo caso desejo aqui insistir em que o redator-chefe mandava muito em seus subordinados.”
Mas belo Horizonte tem uma tradição de farras, românticas e subjetivamente dramáticas, nas madrugadas vazias. O álcool animava o angustiado peripatetismo sob os fícus. Na noite em que mais pungia a weltschmerz [dor ou cansaço do mundo], os jovens poetas mineiros iam, por alguns momentos, viver perigosamente nos altos de um viaduto acima da estação ferroviária. A proeza não matou ninguém e foi repetida, com a mesma inconsciência estrepitosa, pela minha geração. Há também uma história em que os rapazes tocam fogo na casa desdenhosa da namorada de um deles, não conto porque não sei direito.
Havia ainda pancadarias políticas, literárias e esportivas, cabarés com francesas verdadeiras e espanholas de Montes Claros, e solidão, muita solidão. Quando minha turma conheceu pessoalmente Carlos Drummond de Andrade, que visitava Belo Horizonte com uns sapatos de camurça alinhadíssimos, ele se admirou de que mantivéssemos amizade com moças, lembrando que no seu tempo a convivência entre os sexos era de uma rigor absurdo e melancólico.
Em 1930, estreia em livro o poeta, com Alguma poesia:
“Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai Carlos, ser gauche na vida.”
Poucos notaram que dessa vez surgia no Brasil um poeta de verdade. Os “modernistas” eram ridicularizados com alarme pelo séquito póstumo da Olavo Bilac. Um dos poemas de CDA (“No meio do caminho”) tornou-se a pedra de toque da sensibilidade literária (literária é dispensável) brasileira: dividiram-se de um lado os nativos que acreditavam que no meio do caminho pode ter uma pedra; do outro, os que negavam de pés juntos essa possibilidade. Eu cresci e me fiz homem e muito ainda tive de discutir sobre a pedra no caminho. Não que o poema apresente qualquer coisa excepcional; a burrice é que era excepcional, não a burrice em si, mas a pior, a do preconceito, a da rotina mental.
Uma pedra no meio do caminho de um poeta pode ser a burocracia. Carlos Drummond de Andrade, levado pela mão de Rodrigo M. F. de Andrade para o serviço público, em 1928, teve essa pedra na sua frente durante mais de 30 anos. A amizade entre esses dois homens é das mais bonitas e dignas.
Aposentando-se, CDA confessa: “Ainda não sei bem o que é ser aposentado, pois o sou há poucas horas, e custa-me deixar a repartição onde, afinal, eu era feliz. O ceticismo que esses 30 e poucos anos de batente me inocularam não é negativo. Mentiria se dissesse que temos hoje um bom serviço civil; acho que piorou bastante. Por isto mesmo, essas ilhas de boa vontade e fervor, que se mantêm aqui e ali, são confortadoras e mostram que haverá sempre um servidor público disposto a exercer plenamente seu ofício, com probidade, imaginação e iniciativa, sob qualquer governo ou regime. E desses, conheci muitos.”
Mais de 30 anos de funcionalismo, mais de 30 anos de poesia. Se o servidor se recolhe ao lazer da casa da rua Joaquim Nabuco, o poeta ganha espaço, adquire uma certeza artística para a nossa incerteza humana. O poeta verdadeiro não se aposenta nunca, está sempre, cada novo dia, a tomar posse do mundo, ensinando-nos a sentir o que confusamente dizemos. Aqui está uma carreira que continuará indefinidamente. Alguma poesia, Brejo das almas, Sentimento do mundo, José, A rosa do povo, Novos poemas, Claro enigma, Fazendeiro do ar, A vida passada a limpo.
“E pergunto ao poeta
(uma esperança que não digo)
para onde vai – a que angra, serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?
A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.
E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o Chamado.”
[PMC]