14 out 1982

O beija-flor que não vi

Periódico
Jornal do Brasil

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

www.carlosdrummond.com.br 

www.leiadrummond.com.br

Escrevi que há muito tempo não vejo um beija-flor e minha amiga Margot me deu uma lição daquelas:

– Não viu porque não quer. Aqui no meu andar recebo quase diariamente a visita de um magnífico beija-flor, que suga as minhas flores e, quando elas não estão abertas, aceita gentilmente um pouquinho de água açucarada. Chega e vai-se com a maior elegância, como é do estilo dos beija-flores.

Caí para trás, porque Margot, excelente amiga, de impecável bom humor, temperado de uma dose de ironia benévola, é vizinha do segundo andar, e eu aqui, do sétimo, nunca reparei no seu visitante alado. Confesso que me aborreci de leve – pois com beija-flores a gente não pode aborrecer-se à vera – porque esse bandidinho nunca se lembrou de chegar até o meu tugúrio, onde sou provido de plantas floríferas regiamente ofertadas pelo meu amigo Marcelo Garcia. Concluí que preciso expô-las mais na varanda, que devo preparar o meu bebedouro de água doce, que devo consultar Margot sobre o horário do seu beija-flor – e que, sobretudo, devo tornar-me, por humildade e conscientização, digno de merecer a alada visita desse príncipe da natureza.

Mal formulava tais pensamentos, e já recebo linda carta de Elza Borges Ribeiro, que tem a felicidade de morar em uma “amostra de floresta” na Ilha do Governador, “com copas coloridas de praieiros flamboyants entrelaçadas democraticamente com rudes coqueiros, lusas ameixeiras que não dão ameixas mas não param de crescer, mangueiras, sapotizeiros, imensas amendoeiras” e tudo mais a que tem direito uma criatura que ama a Terra, as plantas, os bichos e a vida em geral. 

Colibris – Elza me esmaga com a informação – “tenho-os aos montes. Desde o “beijinho”, meu predileto, minúsculo e cor de caramelo, até os “tesouras”, enormes, imponentes, ativos, sempre à cata de novas donzelas em voos rasantes de flor em flor, de árvore em árvore, com paradas rápidas em galhinhos prediletos, pois também param e descansam como todo mundo. Entre o “beijinho” e eu há uma longa história de amizade. Pousava no fio ao lado da minha janela, mais ou menos às cinco e meia e ali ficava, com o ti-ti característico, até que eu aparecesse e lhe falasse. Ele sacudia as asinhas, catava com elas insetos imaginários, eriçava as penas, saía, pairava no nível do meu rosto, rumava para o abacateiro e voltava. O ritual era repetido até que eu saísse para o trabalho. Mesmo que chovesse”.

Elza condoía-se de vê-lo exposto à chuva, pedia-lhe que se abrigasse: em vão. “Ele devia sentir-se devedor daquela obrigação absolutamente gratuita, pois não tenho em casa bebedouros em forma de flor, que os atrai. Água, tenho sempre em lugares estratégicos, e flores verdadeiras eu as plantei para eles todos”. Era amor, mesmo. Elza conclui:

“Não sei se o professor Ruschi sabe que eles são capazes de amar seres humanos, mas eu sou amada por um deles, e considero isto uma bênção divina. Enquanto nossa casa continuar sendo seu refúgio, enquanto eles nos fizerem sentir que confiam em nós e retribuem com tanto carinho nossos cuidados, farão parte importante da cota de felicidade que nos resta”.

Volto a Margot. Como é evidente que certas pessoas conhecem a múltipla e não dicionarizada linguagem das aves (e minha vizinha e amiga é uma dessas) vou pedir-lhe que convença o seu beija-flor a vir pela manhã interromper o meu trabalho de cronista. Será uma boa medida – para mim, que me encantarei com a sua presença, e para os leitores, que terão uma crônica completamente renovada e até certo ponto ditada por um beija-flor que não liga para eleições, dívida externa, preço da melancia, tragédia de Beirute, etc. A crônica não será propriamente datilografada; será um voo irisado, uma cintilação, um não-sei-que-diga de celestial e terrestre, como cronista algum saberia fazer ou sequer imitar. Não seria gravada, pois detesto aparelhos, nem pintados, pois sou a negação do artista plástico, e meu neto Pedro, dado às artes e aos amores, provavelmente não estaria aqui na horinha do beija-flor, que é fração de fração de segundo. Mas que texto (se podemos chamá-lo assim) honraria a minha coluna!

Por enquanto, só vejo rolinhas bicando no chão da minha rua, e tão familiarizadas com a placidez do local que apenas se afastam um pouco à aproximação do Gerdal, da Dona Delma ou do Pavan, também conspícuos vizinhos. E olhem que rolinha é bicho desconfiado e briguento, mas as do nosso canto urbano se tornaram corteses e confiantes. As amendoeiras estão habitadas por grande número delas, e alguns tico-ticos. O beija-flor de Margot, hei de vê-lo um dia, e prometo saudá-lo com a pouca rima e o pobre ritmo que Deus me deu, mas com que doçura de alma! Vamos, neguinho, não deixes de aparecer também para mim, e se não te for incômodo, sobe até este sétimo andar, onde encontrarás algumas flores vermelhas, que tanto aprecias, e também brancas e azuis, para um pequeno lanche – além, é claro, de um parvo mas deslumbrado carinho. 

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
x
- +