Fonte: A revolução das bonecas, Sabiá, 1967, pp. 136-138. Publicada, originalmente, no Carderno B, coluna "O homem e a fábula", do Jornal do Brasil, de 5/11/1964.

Não estando bem do fígado, nem do coração, deixo-me estar em casa a ler e a pensar. Há anos e anos não me permitia adoecer; esquecera o quanto é agradável esperar a volta da saúde. E, também, como faz bem ao espírito meditar sobre a fragilidade do corpo. 

Amanheceu e vejo pela janela uma combinação de umidade, sol e vento. Depois das chuvas, o dia convalesce. A ideia de trazer no corpo um órgão que não funciona a contento me aborrece; a humilhação age como clorofórmio, sinto sono, meus ombros pesam. Quisera deitar e hibernar. Mas a manhã convalesce, e me esforço para atender ao seu apelo. Desço; ando pelas ruas úmidas, as ruas douradas em que o vento agita os cabelos das meninas. Decido quebrar o jejum de modo completamente absurdo: entro na Colombo, peço cajus e laranjas cristalizadas, começo o meu dia com açúcar. Depois, torradas com mel e chá. Uma jovem prostituta, vestida de maneira abominável, entra no salão, fica um instante indecisa e finalmente avança na direção do mostruário de doces. Escolhe os doces que deseja. Os garçons relutaram um segundo, até que um deles tomou a iniciativa de atendê-la. Duas senhoras idosas olham espantadas para aquela figura. 

“Então”, digo eu, “agora deste para difamar os outros? Quem te autoriza a fazer um juízo sobre o procedimento moral daquela jovem”? Procuro vê-la com outros olhos, encontrar nela os sinais da pobreza limpa e honesta. Mas não há jeito: tudo, nela, evoca irresistivelmente a mais antiga das profissões. Ela apanhou o embrulho com os doces, pagou e partiu contente. 

Volto por minha vez ao sol e ao vento. Como estou doente, ando devagar. Passa por mim um senhor de setenta anos redondos, alto, feições europeias, apoiado numa bengala e tendo à cabeça um chapéu de cowboy. As incríveis meninas de Copacabana com calças compridas e justas que se ligam às blusas por um cinto amarrado nos quadris, essas meninas de seios pequenos e calmos, colhidos ontem nos jardins da infância, andam em todas as direções, olhando as vitrinas, ajeitando os cabelos de meio em meio minuto e despertando a atenção indiscreta dos rapazes de camisas sem gola e calças Lee. 

Vejo numa praça uma cena ridícula: um bonde parado, e algumas senhoras sentadas nos bancos, a viajar. Sinto uma vontade demoníaca de pular para o estribo e cobrar as passagens... 

Novamente em casa. Sairei daqui a pouco para almoçar com uma boa amiga. Estando com o fígado arrebentado pelo excesso de gordura consumida nos restaurantes, ano após ano, sem contar com a ração de álcool dos fins de semana, sinto náuseas só de ouvir falar em comida. Mas ela me oferece uma galinha de resguardo, isto é, aquele frango com pirão que as mulheres comem depois que as crianças nascem.

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