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Coluna "Conversa Literária". Publicada, posteriormente, no Diário Carioca, de 19/11/1957, com o título "As pessoas".

Há pessoas sensíveis e tímidas como os elefantes: quando a falta de saúde as desequilibra, quando uma doença qualquer vem colocá-las em uma situação de inferioridade em meio às outras, escondem-se e se fecham em um silêncio de bicho.

Há pessoas antigas, belas e fora de moda como os grandes relógios de mogno; não combinam com as nossas mobílias de madeira compensada; não cabem em nossos apartamentos, em nossas ideias, em nossas emoções; nós as respeitamos, intimidados, porque os compassos de um relógio antigo marcam dois tempos irreconciliáveis.

Há pessoas lúcidas, devoradas por uma bola de fogo; capazes de uma tristeza seca, sem o consolo do enternecimento; e, no entanto, muitas delas nunca leram sequer uma página de Stendhal; consomem-se sozinhas, nessa deslumbrante e cruel supremacia do espírito.

Há pessoas (e não minto, eu vi) que, ao tomar um bonde, são esmagadas pelas inexoráveis relações cósmicas; a energia é igual à frequência da radiação multiplicada pela Constante de Planck; e esta (ó espaços constelados!) é 0000000000 000000000000006624.

Há pessoas de pulmões excelentes e sem poesia, que fazem lembrar, todavia, o pobre Anto: em Paris, sentem saudades da pátria; na pátria, sentem saudades de Paris.

Há pessoas maltratadas dia a dia, hora a hora, instante a instante, pela sede de justiça. Ah, como sofrem! Ah, como se crispam! Ah, como desejam a aparição de Némesis!

Há pessoas que configuram a terra como um recado que se transmite de orelha a orelha, de homem para homem, de coração a coração. Dormem inquietas, e levantam-se ao primeiro apelo da aurora, e vão ver, através do nevoeiro da vidraça, se a verdadeira ave de fogo vem voando.

Há pessoas que morrem tão devagar, tão sem vontade, que envenenam o carinho de toda a família. Coitadas!

Há pessoas que ficam doendo com a lembrança de outra pessoa, entra ano, sai ano, virando e revirando o caleidoscópio, olhando como caem e se dispõem as cores e os cristais do sofrimento.

Conheci uma pessoa que fechava os olhos no cinema quando aparecia a corrida de cavalos. Tinha uma piedade enorme dos animais.

Há pessoas que têm olhos grandes e assustados como os de Santa Luzia, que padeceu o martírio sob o cônsul Pascassiano.

Muitas pessoas. Artur, que fugiu para a África; Hermano, que perseguiu a baleia; Maria, que entendeu o sentido do sol rubro entre névoas; Jaime, que se correspondia com os objetos; Maurício, que descreveu Maria em livro; Vladimir, que foi uma tormenta; Menezes, destroçado na colina; José, João, Antônio...

Com elas todas, divido o pão e a triste poesia do Natal; com elas compartilho o meu vinho, o vinho intenso da terra.

paulo-mendes-campos
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