Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p. 572. Publicada, originalmente, na revista Careta, de 11/11/1922 e, posteriormente, no livro Coisas do reino de Jambon. São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 190. 

Este nosso Brasil tem coisas interessantes e que põem os mais sagazes atarantados, para explicá-las.

Os médicos aqui dão em gramáticos — e que gramáticos! — ferozes, interessantes, falando e escrevendo uma língua arcaica, que só pode ser compreendida por quem dispuser de quinhentos ou mais mil-réis, para comprar um alentado Domingos Vieira.

Micróbios, bacilos, toxinas e outras coisas ultramodernas da ciência deles, os nossos esculápios as expõem na linguagem de Rui de Pina e Azurara, segundo a gramática de João de Barros, que é de 1540, quando ninguém sonhava com tais novidades.

Os gramáticos não olhavam com bons olhos uma tal invasão, por parte dos cirurgiões, na sua seara. Ruminaram a vingança, durante muito tempo. Acharam afinal uma e que foi de truz! Deram em dar consultas grátis, não nos fundos das boticas, mas nas páginas mortas dos jornais diários. Assim como um sujeito que não tem dinheiro e sente fortes dores de barriga corre à consulta grátis do doutor, na farmácia mais próxima, assim também um cidadão dado a gramáticas, mas que não quer comprar por quatro mil-réis uma de qualquer autor e tem dúvidas se é “um dos que foi” ou “um dos que foram”, afia a pena, escreve uma carta, consultando o gramático de certo jornal, tal e qual o outro das dores de barriga faz com o médico da botica.

Os gramáticos, porém, não pararam aí, na sua vingança contra os médicos. Foram além. Criaram uma patologia linguística e deram em estudá-la, já em artigos, já em opúsculos e livros.

Termos de argot, de calão, construções populares, modismos profissionais, eles se puseram a analisar, a explicar, ao jeito do que fazem os médicos com as doenças, moléstias, lesões, etc.

O “dialeto caipira”, de São Paulo, mereceu um estudo completo do senhor Amadeu Amaral. Já não se trata mais de calão de ladrões e malfeitores, que tem sido muito estudado, havendo até dessa gíria dos gatunos do Rio um vocabulário muito bem feito pelo senhor Elísio de Carvalho.

Os atuais estudos dos modernos gramáticas vão mais longe: abrangem o falar dos habitantes de grandes regiões do país, não se limitam ao vocabulário e entram pela sintaxe adentro. Vão sendo da moda tais indagações.

O senhor Süssekind de Mendonça, com o sucesso que obteve o seu livro sobre football, parece ter tomado gosto por coisas de livraria e fez-se livreiro.

Estreou as edições de sua casa com uma obra do doutor Roquete Pinto — Conceito atual da vida; e uma outra muito curiosa, versando sobre um capítulo de “patologia linguística”. Trata-se do O linguajar carioca, em 1922, pelo Senhor Antenor Nascentes.

É tê-lo em mãos, durante os quinze dias, um qualquer gaúcho ou acreano ficará logo “carioca da gema”. Acho muito útil agora que se vai dar uma mudança de governo, porque, quando isso acontece, no séquito do novo presidente, vêm muitos tabaréus, à cata de empregos aqui no Rio. Naturalmente não sabendo o nosso “linguajar” nos primeiros dias ficarão atrapalhados; entretanto, se adquirirem o livro do doutor Nascentes, desde já, tal coisa não acontecerá.

Pelo que veem, não foi sem utilidade que os médicos deram em fazer gramática e os gramáticas, patologia. Ainda bem.

lima-barreto