Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p.294.  Publicada, originalmente, na revista Careta, de 15/01/1921 e, posteriormente, no livro Marginália, Brasiliense, 1956, p.117.

O senhor doutor Carlos Sampaio é um excelente prefeito, melhor do que ele só o senhor de Frontin. Eu sou habitante da cidade do Rio de Janeiro e, até, nela nasci; mas, apesar disso não sinto quase a ação administrativa de Sua Excelência. Para mim, Sua Excelência é um grande prefeito, não há dúvida alguma; mas de uma cidade da Zambézia ou da Cochinchina.

Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será a europeia e a outra, a indígena.

É isto que se faz ou se fez na Índia, na China, em Java, etc.; e em geral, nos países conquistados e habitados por gente mais ou menos amarela ou negra. Se não, vejamos.

Todo dia, pela manhã, quando vou dar o meu passeio filosófico e higiênico, pelos arredores da minha casa suburbana, tropeço nos caldeirões da rua principal da localidade de minha residência, rua essa que foi calçada há bem cinquenta anos, a pedregulhos respeitáveis.

Lembro-me dos silhares dos caminhos romanos e do asfalto com que a Prefeitura Municipal está cobrindo os areais desertos de Copacabana.

Por que será que ela não reserva um pouquito dos seus cuidados para essa útil rua das minhas vizinhanças, que até é caminho de defuntos para o cemitério de Inhaúma? Justos céus! Tem acontecido com esses cada cousa macabra! Nem vale a pena contar.

Penso que, nessa predileção dos prefeitos por Copacabana, há milonga; mas nada digo, porquanto tenho aconselhado aos meus vizinhos proprietários que a usem também.

Outro cuidado que me faz meditar sobre as singulares cogitações do atual prefeito, é a sua preocupação constante dos hotéis e hospedarias.

No tempo em que o senhor Calmon foi ministro da Indústria, quase se criou uma diretoria geral, na sua secretaria, para tratar de hotéis, hospedarias, albergues, pousos e quilombos; atualmente, cogita-se na criação de um Ministério de Festas, Bailes, Piqueniques, Funçonatas, Charangas e Football; mas essas criações são, ou serão, levadas a efeito pelo Governo Federal, cuja riqueza é ilimitada e pode arcar com as despesas respectivas e bem-empregadas na defesa da Pátria.

A prefeitura, a municipalidade, porém, não tem, como ele, o privilégio de fazer dinheiro à vontade, donde se pode concluir que ela não poderá arcar com os pesados gastos de hotéis luxuosos para hospedar grossos e médios visitantes ilustres.

De resto, municipalidade supõe-se ser, segundo a origem, um governo popular que cuide de atender, em primeiro lugar, ao interesse comum dos habitantes da cidade (comuna) e favorecer o mais possível a vida da gente pobre. Esses hotéis serão para ela?

Pode-se, entretanto, admitir, a fim de justificar o amor do prefeito aos hotéis de luxo que quer construir à custa dos nossos magros cobres; pode-se admitir que, com isso, Sua Excelência pretenda influir indiretamente no saneamento do Morro da Favela.

Municipalidades de todo o mundo constroem casas populares; a nossa, construindo hotéis chics, espera que, à vista do exemplo, os habitantes da Favela e do Salgueiro modifiquem o estilo das suas barracas. Pode ser...

O senhor Sampaio também tem se preocupado muito com o plano de viação geral da cidade. Quem quiser, pode ir comodamente de automóvel da Avenida a Angra dos Reis, passando por Botafogo e Copacabana; mas ninguém será capaz de ir a cavalo do Jacaré a Irajá.

Todos os seus esforços tendem para a educação do povo nas coisas de luxo e gozo. A cidade e os seus habitantes, ele quer catitas. É bom; mas a polícia é que vai ter mais trabalho. Não havendo dinheiro em todas as algibeiras, os furtos, os roubos, as fraudes de toda a natureza hão de se multiplicar; e, só assim, uma grande parte dos cariocas terá “gimbo” para custear os esmartismos sampaínos. A recrudescência do aparecimento de notas falsas está fornecendo um excelente pano de amostra.

Contudo, não é conveniente censurar o doutor Sampaio por isso.

O Teatro Municipal é uma demonstração de como a municipalidade pode educar o povo, muito a contento. Construiu, ali, na Avenida, aquele luxuoso edifício que nos está por mais de vinte mil contos.

Para se ir lá, regulamentarmente, um qualquer sujeito tem que gastar, só em vestuário, dinheiro que dá para ele viver e família, durante meses; as representações que lá se dão são em línguas que só um reduzido número de pessoas entende; entretanto, o Teatro Municipal, inclusive o seu porão pomerizado, está concorrendo fortemente para a educação dos escriturários do Méier, dos mestres de oficina do Engenho de Dentro e dos soldados e lavadeiras da Favela.

Não se pode negar...

lima-barreto