Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p.383.  Publicada, originalmente, na revista Careta, de 23/07/1921 e, posteriormente, no livro Vida urbana, Brasiliense, 1956, p.253. 

A última e formidável ressaca que devastou e destruiu grande parte da Avenida Beira-Mar merece considerações es¬peciais que não posso deixar de fazer. O Mar tinham os antigos como sendo um dos cinco elementos da Natureza; do Mar, afirmam os sábios modernos, veio toda a vida. É assim o Mar um deus tutelar da nossa espécie. Nós lhe devemos tudo ou quase tudo. Não fora o Mar, ainda a Terra estaria muito por conhecer; ele é o meio mais eficaz de comunicação entre os povos.

Vence-se mais facilmente a mesma distância por mar do que por terra. Desde tempos imemoriais, é o campo das grandes audácias e dos grandes audaciosos.

O Mar é um deus ou um semideus.

Como tal, tem merecido desde os tempos homéricos o louvor dos grandes poetas. Ele é a maravilha da Terra, a maior delas. Ainda agora recebo um livro de poesias – Asas no azul – de Mário José de Almeida – que abre com este lindo soneto sobre o monstro:

 

ÂNSIA DO MAR

Vibra, escachoa o oceano, brame, investe
para o amplo azul – noite e dia – não cansa
a onda que na praia se destrança
e da alvura da espuma se reveste.

Dentro do sonho, envolto na esperança
de inda atingir a placidez celeste,
o mar se arroja, torvo se abalança
nas asas colossais do sudoeste...

E parece que o mar se espraia
de praia a praia, ovante ramifica
o mesmo anelo – anseio de Himalaia.

À noite, à luz da lua que desponta,
a onda em sua fala comunica
todo o queixume que a outra prata conta.

 

Mas os grosseiros homens do nosso tempo, homens educados nos cafundós escusos da City londrina ou nos gabinetes dos banqueiros de Wall Street, onde se fomenta a miséria dos povos, não lhe quiseram ver a grandeza, o mistério e a divindade, a sua palpitação íntima. O Mar, como a vida humana, não podia deixar de ser também um bom campo às suas “cavações” ou “escavações”, e trataram de explorá-lo.

De há muito que ele havia marcado os seus limites com a terra; de há muito que ele dissera a esta: o teu domínio para aí e daí não passarás.

Tais homens, porém, embotados pela sede de riquezas, não perceberam bem isto; e, a pretexto de melhoramentos e embelezamentos, mas, na verdade, no intuito de auferirem gordas gratificações de banqueiros, trataram de estrangulá-lo, de aterrá-lo com lama. Diziam eles que tal faziam para tornear belos passeios, como se o Mar por si só não fosse Beleza.

No começo, entraram por ele adentro com timidez; ele deu uns pequenos avisos de que não deveriam continuar. Os homens de negócios não viram tais avisos; não pressentiram o que eles continham, porque não entraram no mistério das cousas. Tomaram-se de audácia e foram levando além o propósito de comprimir o mar, a fim de ganharem boas gorjetas.

O mar nada disse e deixou-os, por alguns meses, encherem-no de lama. Um belo dia, ele não se conteve. Enche-se de fúria e, em ondas formidáveis, atira para a terra a lama com que o haviam injuriado.

lima-barreto