Sente-se que uma teia de aranha vem sendo tecida, malha por malha. As ameaças à liberdade do cidadão cada dia parecem mais sérias; e, sob a capa de defesa contra o comunismo, o que se vai arrumando é o esqueleto ominoso do estado policial.

A ofensiva cresce de todos os lados. É a portaria do rádio atentado impune e impudente contra a liberdade de expressão. É a pressão ultramontana contra homens de pensamento, como a que agora se inaugura contra o grande Anísio Teixeira. Um dos sintomas mais sérios e urgentes dessa ofensiva foram as queixas repetidas e amplamente divulgadas das nossas mais altas autoridades policiais contra as leis e os juízes que “entravam” e “desmoralizavam” o esforço policial. Como se isso fosse verdade. Como se as leis que temos, boas e sábias, como se os nossos juízes ― o que nos resta de mais limpo, honesto e destemeroso no quadro dos servidores civis ― fossem os culpados dos erros, ineficiências e, com licença da palavra, até crimes da polícia. O que desmoraliza a polícia não são os juízes, é a velha instituição do tira truculento, do polícia leão de chácara, do polícia amigo de bicheiros.

Quando se inventou polícia não foi para reprimir: isso cabe à justiça. Polícia é, acima de tudo, destinada a prevenir; e quando falha e não consegue evitar o crime, só lhe cabe investigar, descobrir os culpados ― não tem nada que ver com punição. Punir é assunto muito acima da sua chinela. Polícia é sinônimo de vigilância. Para dar cobro à onda de assaltos que cada dia cresce mais sobre a cidade, não adianta nova lei permitindo espancar, deportar e até fuzilar marginais (e, segundo foi confessado, isso já se faz, oficiosamente); assalto se evita é fiscalizando-se as ruas, é coibindo-se o porte e a venda de armas. Que o chefe de polícia peça mais verba para pessoal, peça mais escolas de aperfeiçoamento para detetives e inspetores e, acima de tudo ― que eleve moralmente a polícia. Expulse os maus, ponha todos no nível dos bons, porque há policiais bons, também. Sem querer ofender ninguém, a verdade é que o nosso principal problema, no assunto polícia, é de moralidade e confiança; é de idoneidade. ― Dizem os jornais que o chefe de polícia e o titular da DOPS estão nos EUA, onde estudam os processos do FBI, a fim de instalarem aqui uma super-polícia. E nós pensamos, tremendo, o que será de nós se eles criam aqui um organismo policial com a latitude de poderes, o sigilo protetor, as verbas secretas, que são o apanágio dos G-Men. Mas ― “quem guarda os guardas”? Sim, quem nos guardará contra esses guardas?

Em todo caso, as ameaças de um FBI crioulo, as lamentações das autoridades policiais, não teriam um aspecto tão ameaçador se não viessem sincronizadas com a segunda parte da ofensiva: o governo anuncia que vai pedir ao Congresso uma lei de fidelidade!

― Lei de fidelidade. ― A expressão é até bonita, tanto em si como pelas ideias que sugere. Mas ela é dessa família de palavras que servem para indicar a coisa contrária ao seu sentido formal: como “casa de saúde”, que significa a casa onde se está doente. Lei de fidelidade quer dizer é inquisição, perseguição. Quer dizer atentar-se, sob proteção legal, contra a liberdade mais essencial ao homem, e a mais duramente conquistada: a liberdade de pensamento. Quer dizer o reinado da hipocrisia, e do policialismo. Quer dizer a volta do atestado ideológico. Quer dizer delação. É a liberdade de cátedra liquidada; é a queima de livros em praça pública. É a caça às feiticeiras, executada em toda a sua medieval ferocidade.

Mas não adianta pregar aos responsáveis pela sugestão criminosa a inconstitucionalidade e os perigos de uma tal legislação. Eles sabem disso melhor que nós! Basta que se aponte ao povo a inutilidade da medida em relação ao fim a que aparentemente se destina. Lei de fidelidade não apanha traidores; nem apanha militantes de partidos subversivos. De que adiantou a onda de terror e de baixa demagogia que durante o período macarthista varreu os Estados Unidos? Uma lei dessas não atinge culpados, senão muito excepcionalmente. Ela o que apanha são inocentes e, ouso dizer, os homens que a solicitam, sabendo disso, como o sabem, não agem de boa-fé; o que eles querem é um pretexto para pegar os inocentes ― os incômodos inocentes. Pois se uma comissão de inquiridores pergunta a um comunista militante se ele é comunista mesmo, o revolucionário seria um néscio se respondesse que sim. Ele não se pertence, não tem obrigação de falar verdade ao juiz; ideologicamente se desobrigou de qualquer compromisso moral com aquela lei que o juiz representa. Nem adianta apelar para a sua honra, porque a honra dele pertence ao partido. Mas se me perguntarem a mim, a você, ao brigadeiro Eduardo Gomes, que somos pessoas de bem, se, por exemplo, nós achamos que determinada sedição militar foi a salvação da pátria, se consideramos o Coronel Mamede um traidor e um extremista, se “impedir” presidente da república é ato legal e louvável ― nós teremos que dizer que não. Pois não nos cabe usar de escapatórias táticas, não somos militantes subversivos, somos donos da nossa honra, e sentimo-nos obrigados a falar a verdade, mormente quando se apela para essa honra. E aí iremos para a cadeia sob a acusação de “infiéis” ao regime, enquanto o conspirador ― que nada impediu de mentir ― sai, limpo de culpas, a fabricar as suas bombinhas e a fomentar as suas sedições. No fundo, o que interessava mesmo era o nosso crime ― porque nós é que somos abertamente adversários dos homens do poder.

E o capítulo das denúncias? Qual a pessoa honrada capaz de delatar alguém por crime “ideológico”?

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Isso é que todos devem ter bem presente, os verdadeiros adversários do comunismo que ingenuamente pensem em obter maior segurança social sob uma lei de fidelidade. O que caracteriza as leis dessa espécie, além da sua ilegitimidade, é a sua ineficiência. Ou antes o seu fatal desvirtuamento. De que tem servido a portaria do rádio ― que é uma espécie de “caça aos infiéis” radiofônica? Fecham-se os microfones e vídeos, não aos inimigos do regime, mas especificamente aos adversários do Governo. Prestes falou o que quis, brilhou nas telas do Rio e São Paulo. Mas o dr. Raul Pilla não tem o direito de dizer amém num microfone, senão fecham a estação que o pôs no ar.

Defesa contra comunistas é afastá-los das posições chaves, dos cargos de confiança. E esses cargos, essas posições, não precisam de lei nova para serem preenchidos ou desocupados. Eles são de confiança, seus ocupantes são demissíveis ad nutum! Não há lei, por mais severa, que impeça um político de fazer acordos com extremistas. Nem há lei que obrigue uma polícia deliberadamente cega a achar nas catacumbas alguém que ela não quer descobrir. De que serviu o golpe espetacular e errado da cassação de mandatos dos deputados comunistas, o fechamento do Partido Comunista? Não deixou de haver na Câmara deputados comunistas, eleitos em outras legendas, e nem deixou sequer de funcionar o PC, em toda a plenitude, com a sua imprensa e a sua tribuna. E os processos contra Prestes só têm servido para manter no galarim do martírio cívico esse homem medíocre e sem escrúpulos.

Lei de fidelidade ― nós todos sabemos: quando ela pisa em casa, a ditadura já está batendo à porta. E o Brasil como está vai muito mal, todos sabemos. Mas com ditadura irá muito pior ― disso todos também nos lembramos ― e quanto! 

rachel-de-queiroz
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