Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 4/01/1968.

A Lúcio Cardoso, uma vez, perguntaram por que escrevia romances, e ele respondeu: “Porque não tenho olhos verdes”. A Jean-Paul Sartre, quando lhe cortaram os cachos, acometeu a suspeita de ser um monstro. Helena Morley, na adolescência, descobriu assombrada que era bonita.

Com perucas, operações plásticas e outros truques, as mulheres, hoje em dia, vão melhorando a natureza. Mas a metamorfose de uma jovem atriz que encontrei outro dia no Le Bateau é simplesmente impressionante, porque não se originou em nenhum artificio. Há uns 10 anos ela era pequenina, magrinha, sem graça. Boazinha, coitada. Refugiava-se no deslumbramento literário: lia poemas alemães traduzidos — coitadinha! Confessava-se amolada por não engrenar com ninguém, o que era natural, pois a mulher que se sente feia espalha essa impressão por toda parte. A beleza é uma questão de vontade; querer é já um modo de ser.

Pois bem, um dia ela resolveu que ia ser bonita. Abriu uns botões na blusa, entremostrando bonitos seios. Puxou o cabelo para trás da orelha, acentuando nesse gesto o nariz arrebitado. Depois se olhou no espelho e declarou: “Sou bonita”. E era mesmo. Todo mundo reparou. Sua confiança e satisfação revelaram-se contagiantes. Já não precisa ter lido Goethe, Rilke ou Nietzsche para que a levassem a uma boate. Foi convidada para um papel sexy no teatro e abafou a banca, inclusive com sua foto desnuda em todos os muros.

Não direi o nome dela, porque não vem ao caso. Mas sábado passado, no Le Bateau, me debrucei sobre o mistério dessa transformação. Nisto a natureza colaborou: suas carnes explodiram, delinearam-se, ela engordou creio que cinco quilos. Os famosos botões continuam livres; a blusa sabiamente desabotoada continua funcionando a contento. Tive vontade de lhe dizer — mas com que palavras? Gostaria de dizer-lhe o seguinte:

Você se lembra de quando era feia? Pois é. Você vivia lá na Gôndola, entre artistas de todos os sexos. Você era inclusive chatinha, sabe? Vivia na fossa. A gente tinha por você uma ternura mesclada de aborrecimento. Uma pessoa que não gosta de si mesma não merece ser gostada pelos outros. Porém um dia você reagiu. Você se olhou no espelho e disse: “A partir deste instante, eu me recuso a ser feiosa e infeliz. Não quero mais que ninguém tenha pena de mim”. Dito e feito. Nós te olhamos e vimos que você era uma pessoa. Você, que vivia escondida no fundo de um monstruoso sentimento de inferioridade, apareceu plenamente na superfície do seu próprio rosto. Dir-se-ia que você passara anos sem saber que tinha um rosto, e que nessa superfície a sua alma poderia derramar-se.

Lá está ela, bonita e satisfeita, na penumbra. Não há mulheres feias; a feiura é falta de caráter, preguiça ou covardia.

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