Periódico
Manchete

Publicada nos livros O cego de Ipanema, de 1960, e Cisne de feltro, de 2001.

Dia 29 de novembro era aniversário de dona Estefânia, minha avó. Ganhava sempre um vestido novo, escuro de bolinhas cinzentas ou cinzento de bolinhas escuras. E tinha início a faina espetacular do almoço comemorativo. Era uma criatura doce entre as mais doces criaturas, mas, filha do interior de Minas Gerais, celebrava-se o acontecimento com muito sangue, sangue farto de leitoas, perus e galinhas. As talhadas de carne sadia extravasavam das terrinas, das bacias de folha-de-flandres, das gamelas, das panelas de pedra. Improvisavam-se fogões no quintal, disputava-se a prioridade do uso dos fornos, trempes e utensílios; mobilizavam-se para o trabalho os parentes todos e alguns vizinhos solícitos. E era então um tal de abrir forno e fechar forno, provar, espetar, banhar, salgar, revirar a vianda, discutir acaloradamente se a carne estava no ponto, preparar os molhos, picar a salsa e a cebola, ralar o queijo, remexer o tacho, era uma azáfama de aventais brancos, mulheres afobadas indo e vindo, empregadas de todos os tamanhos, os netos menores atrapalhando o caminho, um aroma puro de pão assado, um chiar animado de caçarolas ferventes, e recados, e apelos, e gritos de ansiedade, e dolorosas exclamações de desalento, e as tias a se consolar mutuamente, a dizer a cada minuto que o almoço não ficaria pronto na hora.

Ficava. Quando a batalha parecia perdida, quando os primeiros convidados já eram recebidos na varanda com um copo de cerveja ou de vinho, a casa se desencantava miraculosamente, o caos doméstico se transformava em ordem e limpeza, os móveis se compunham para a dignidade especial do dia, o assoalho, o ladrilho e os azulejos fulgiam, os guardanapos e as toalhas de linho saiam de vastas cômodas, as louças, as porcelanas, os talheres e os cristais reluziam, as cortinas lavadas se desfraldavam na brisa, e a gente reparava que o rosto de vovó ficara radiante como o sol que punha fogo na relva do jardim, nas hortênsias violáceas, nas braçadas de margaridas, nas rosas soberbas. Era uma beleza súbita, toda feita de ânimo juvenil, a beleza de minha avó.

Iam chegando os parentes, os amigos, os grandes abraços, os elogios, e dona Estefânia a recebê-los com os olhos brilhando de emoção e de inocência, cortando o murmurinho cordial e alegre com uma risada que conservou adolescente a vida toda. Os comensais, segundo o grau de intimidade, conversavam pelas dependências da casa, na varanda, na sala de jantar, na copa, na cozinha, no quintal, ou na sala de visitas, decorada esta, pelas mãos das tias, de bizarras paisagens lunares.

A expectativa não era o melhor da festa nesse caso. Com timidez, sem possuir uma absoluta certeza de ter chegado o momento oportuno, minha avó dizia: “Bem, gente, vocês devem estar morrendo de fome...” É mesmo, ecoavam as tias se desculpando, já passa de uma hora.

E vinha a procissão dos pratos, bandejas, alguidares, travessas, compoteiras, galhetas, lombos de porco que só pediam, se tanto, algumas gotas de limão, o alvadio peru, insulado em farofa dourada, o festivo arroz de forno, o divino tutu de feijão, panquecas, tenros pãezinhos recheados de picante linguiça, o imponderável suflê, o macio milho-verde, galinhas ao molho pardo, as saladas verdíssimas e rubicundas, o vinho estimulando e poetizando a fome; depois a tachada de goiabas, as ameixas, os cremes, as frutas cristalizadas, o café caprichado, o cigarro. E um sentimento sem morte e sem velhice apossando-se dos convidados, reduzindo-os a uma sensação de espessa felicidade.

Dona Estefânia foi uma senhora feliz. Não conhecendo inveja, nunca falou mal de ninguém. Compunha colchas de retalhos coloridos, colecionava pratas de cinco mil réis em caixas de sapato, viajava de automóvel para fora de Belo Horizonte todas as manhãs, para beber leite de vaca tirado na hora, confiava infinitamente em Santo Antônio, achava uma graça extraordinária na leitura do Diário da Tarde, ouvia religiosamente o Teatro pelos ares da Rádio Mayrink Veiga, não erguia a voz, não repreendia ninguém, nunca permitiu em hipótese alguma que qualquer pessoa saísse de sua casa antes de aceitar um doce, um biscoito, um licor. Referia-se a meu avô, falecido muitos anos antes, como sempre lhe chamou em vida: seu Zé Campos. Seca e resistente, aos oitenta anos, uma grave infecção a derrubou durante vários meses. Todos esperavam a sua morte a qualquer instante. Ela na cama, a sofrer noite e dia, sem queixar-se, compadecida daqueles que a velavam. Descobriram a sulfa, dona Estefânia saltou logo da cama e viveu mais cinco anos. Verdadeira, simples e alegre como a água. Só em certos momentos especiais era capaz de perigosa malícia: no truco, quando blefava descaradamente com o ar mais inocente deste mundo.

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