10 set 1960

Menino da cidade

Periódico
Manchete

Publicada, posteriormente, no livro Homenzinho na ventania, de 1962, com pequena alteração no título:  "Menino de cidade".

Ouça a crônica de Paulo Mendes Campos na voz de Bia Paes Leme, coordenadora de música do IMS.

Papai, você deixa eu ter um cabrito no meu sítio? 

Deixo.

E porquinho-da-índia? E ariranha? E macaco? E quatro cachorros? E duzentas e vinte pombas? E um boi? Uma vaca? Um rinoceronte?

Rinoceronte não pode. 

Tá bem, mas cavalo pode, não pode?

O sítio é apenas um terreno no Estado do Rio, sem maiores perspectivas imediatas. Mas o garoto precisa acreditar no sítio como outras pessoas precisam acreditar no céu. O céu dele é exatamente o da festa folclórica, a bicharada toda e ele, que nasceu no Rio e contra a própria vontade vive nesta cidade sem animais. Aliás, ele mesmo desmente que o Rio seja uma cidade sem bichos, possuindo o dom de descobri-los nos locais mais inesperados. Se entra na casa de alguém, desaparece ao transpor a porta para voltar depois de três segundos com um gato ou cachorro na mão. A gente vai andando por uma rua de Copacabana, ele some e ressurge com um pinto amarelo. É chegar na Barra da Tijuca, e daí a cinco minutos ele já apanhou um siri vivo. Localiza misteriosamente todos os animais da redondeza, anda pela rua em disparada, cumprimentando aqui um papagaio, ali um ganso, mais adiante um gato, incansável e frustrado.

Não distingue marcas de automóvel, em futebol não vai além de Garrincha e Nilton Santos, mas sabe perfeitamente o que é um mastim, um boxer, um pastor alemão. Dá informações sobre as pessoas de acordo com os bichos que elas possuem: aquele é o dono do Malhado, aquela é a dona do Lord... Ao telefone, pergunta por patos, gatos, e outros cachorros, centenas, milhares de cachorros, cachorros que ele prefere aos companheiros, cachorros que o absorvem na rua, na escola, na hora das refeições, cachorros que costumam latir e pular em seus sonhos, milhões de cachorros.

Sua literatura é rigorosamente especializada: livros coloridos sobre bichos. Engatinha mal e mal na leitura, mas fala com uma proficiência um pouco alarmante a respeito de répteis, batráquios etc. Filho de mãe inglesa, confunde fork com knife, mas sabe o que é seal e walrus. Se pede um pedaço de papel, é para desenhar uma zebra ou uma baleia.

É claro que a sua profunda frustração causa pena. Por isso mesmo, há algum tempo ganhou como consolo um canarinho-da-terra. Um dia, no entanto, como lhe dissessem que iam dar o passarinho, caso ele continuasse a comportar-se mal, correu para a área e abriu a porta da gaiola. Deram-lhe um bicudo, mas o bicudo morreu de tanto alpiste. Ganhou mais tarde uma tartaruga, pequenina e estúpida, que recebeu na pia do banheiro o nome de Henriqueta. Nunca qualquer outro quelônio deu tanto serviço. Um dia foi ao dentista na cidade, e, ao voltar para a casa, disse ao pai pela primeira vez uma palavra horrível: estou desesperado. Tinha perdido a tartaruguinha no lotação.

Ficou um vazio em sua vida. Seu alívio era ligar o telefone interurbano para a avó e indagar pelos patos que “possuía” em outra cidade. Ou fazer uma visita à futura mãe do Poppy, este um poodle que deverá nascer daqui a meio ano, prometido de pedra e cal para ele. Outro expediente: caçar borboletas, mariposas, grilos, alojar carinhosamente os insetos nas gaiolas vazias, chamar-lhes pelos nomes dos antigos bichos mortos ou desaparecidos.

Um tio deu-lhe outra vez um canário, o carinho foi demais, o passarinho morreu. Não há nada a fazer, por enquanto, e ele dedicou-se à arte de desenhar. De vez em quando ainda se anima e entra em casa afogueado, mostrando alguma coisa quase invisível nas mãos: “Olha que estouro de grilo”! Mas os grilos e as borboletas legais morrem ou saem tranquilamente das gaiolas, e ei-lo novamente de mãos e alma vazias.

Mas deu um jeito: arranjou alguns pires sem uso e plantou sementes de feijão. O banheiro está cheio de brotos de feijão, verdes e tímidos. E ele já se convenceu de que possui uma enorme fazenda.

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