Filhos — diz o poeta — melhor não tê-los. Já o prosador Aníbal Machado me confiou gravemente, certa vez, que a vida pode ter muito sofrimento, que o mundo pode não ter explicação alguma, mas que, filhos, era melhor tê-los. A conclusão parece simples, mas não era; Aníbal tinha ido às raízes da vida, e de lá arrancara essa certeza imperativa de que a procriação é uma verdade animal, uma coisa que não se discute, fora do alcance filosófico. “Eu não sei por que, Paulo, mas fazer filhos é o que há de mais importante”. Engraçado é que, depois dessa conversa (há uns cinco anos), fui descobrindo devagar a melancólica impostura daquelas palavras corrosivas do final de “Memórias Póstumas”: “não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Filhos, melhor tê-los. Aliás, o mesmo poeta corrige antiteticamente o pessimismo daquele verso, quando pergunta: mas, se não os temos, como sabê-lo? Ou, resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é de todo indispensável tê-los para sabê-lo; logo, melhor tê-los.

O leitor vai se rir de mim quando souber que comecei a crônica desse jeito depois de procurar em vão o meu bloco de papel. Pois se ria a valer: o desaparecimento de certos objetos tem o dom de conclamar, por um rápido edital, todas as forças neuróticas que moram nas províncias de meu corpo. Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água abaixo o comedimento quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha cola... Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter; vem-me a tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia deserta, de voltar para Minas Gerais, de renunciar...

Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio que seria capaz (talvez seja presunção) de aguentar com relativa indiferença uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences. O que não suporto é a repetição indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro.

Stanislaw Ponte Preta inventou, certa feita, que eu usava ventilador para pentear os cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da Guanabara. Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes por mês, de todos os tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de infância do vendedor de pentes que estaciona ali na esquina da Pedro Lessa com Rua México. A princípio, pensou que eu estava subestabelecendo o comércio dele, comprando para vender mais caro, mas um dia eu lhe contei toda a minha tragédia familiar e ele me sorriu e confessou: “Lá em casa é a mesma coisa”.

Chego em casa com os meus pentes e os distribuo a mancheias. Dois para você, três para você, quatro para você — segundo o temperamento e a distração de cada um. Aviso a todos de que vou colocar um no armário do quarto, um no banheiro, um em cada mesa de cabeceira, dois na minha gaveta. Terminada essa operação ostensiva, fico malicioso e furtivo; secretamente, vou escondendo outros pentes por todos os cantos e recantos, debaixo do colchão, no alto de um móvel, atrás do meu exemplar dos Suspiros poéticos e saudades. Em seguida, reúno solenemente toda a família, inclusive o Poppy, tiro do bolso um pente singular, o mais característico encontrável na praça, e digo: “Este é o meu pente; este ninguém usa; neste, sob pretexto algum, ninguém toca. Estão todos de acordo ou algum dos presentes deseja levantar qualquer objeção”?

Estão todos de acordo. A sinceridade do meu clã nesses momentos é de tal qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de que, afinal, venci, de que descobri o approach certo para a família incerta. Mas, meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida, sempre errados! Os dias passam, o vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes, os meus pentes também passam. Misteriosamente, inexplicavelmente, eles desaparecem, pouco a pouco, com certa malícia, um a um, dois a dois, até chegar o momento dramático no qual, depois de vasculhar todos os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da sala e, como Ricardo III em plena batalha, exclamo, patético: “Um pente, um pente, meu reino por um pente”!

Eu não fui — diz o primeiro; eu não fui — diz o segundo; eu não fui — diz o terceiro; Poppy, cuja especialidade é comer meias e sapatos, não diz nada, mas abana o rabo negativamente.

Não foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o diabo, foi a minha sina.

A minha mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é inacreditável a quantidade de objetos que estão desaparecidos aqui dentro. Um dia, quando me mudar, a gente vai achar tudo, e sorrir um para o outro com uma nostalgia imprecisa, e dizer em silêncio que, filhos e pais, é melhor tê-los.

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