Fonte: Crônicas efêmeras: João do Rio na Revista da Semana. Pesquisa e apresentação de Niobe Abreu Peixoto, Ateliê Editorial, 2001, pp. 53-54. Publicada, originalmente, na Revista da Semana, de 12/02/1916, sob o pseudônimo de Joe. Incluída, posteriormente, no livro Pall-Mall Rio, Editora Villas-Boas, 1917.
Um jovem gentleman, como se chama agora. A começar pelos pés: borzeguins em que o couro aparece apenas na biqueira e no contraforte dos saltos; calça dobrada e larga do joelho para cima; casaco cintado logo abaixo do peito (o que lhe faz um pequeno ventre artificial de canguru) com botões grandes nas portinholas de todos os bolsos; camisa leve de riscas; gravata petit noeud no colarinho baixo e mole; um chapéu de palha debaixo do braço; cara raspada e passada em creme com pó pelo processo americano; cabeleira negra lustrosa, toda para cima.
O gentleman espera. Como sacode o braço, verificamos que tem também uma pulseira.
É à porta de um estabelecimento que na célebre opereta inglesa e geralmente em todo o Japão daria pelo nome de “casa de chá”.
De repente para um automóvel de luxo. Salta uma encantadora rapariga francesa. Botas brancas até quase ao joelho. Um vago vestido de linha rosa. Chapéu primavera. Parece uma caricatura do gênero bergère, divulgado pelas oleografias após uma série de pintores que no XVIII século pintaram muito em França para encher no século XX os museus e os palácios da Alemanha.
Acompanha a encantadora criatura um outro jovem ou gentleman.
Mesmo traje. Chapéu debaixo do braço.
O segundo gentleman precipita-se.
— Tiens! On causait justement de toi!
— Vraiment?
— Yes!
— Very nice!
Saúdam-se os três. Risos de uma frivolidade contente de ser frívola. Os jovens são positivamente brasileiros, brasileiros muito mais da gema que da clara. Chamam-se, porém, de Gaston e Jean, conversam em francês, só em francês.
— Figure-toi, mon vieux...
Um filósofo diante desse quadro elegantíssimo que quase desafia os clubs do nosso prezado e brilhante cronista Sebastião Sampaio, ficaria a fazer reflexões sobre a civilização, a língua portuguesa e outras coisas impertinentes. Um velho de bom senso estaria revoltado, e diria:
— Por que não falam vocês em português? Leiam o Eça de Queirós, leiam vários homens de respeito, vejam os rapazes argentinos, com os quais as francesas transatlânticas têm todas aprendido a falar o espanhol!...
Esses dois sujeitos seriam mal-educados e nada adiantariam. Diante do quadro encantador, eu compreendi a necessidade da caricatura e senti duramente não ter o dom de Julião Machado, o grande, não ter o lápis de J. Carlos, não ter a vida diabólica de Calixto, não ser por segundos o Raul Pederneiras. Porque bastaria apanhar aquela mesa, os dois jovens de cabelos negros e chapéus debaixo do braço, a linda rapariga de cor-de-rosa e pôr como legenda as palavras: civilização francesa.
E ficaria um quadro de costumes, do nosso Rio atual, demonstrando como uma simples menina às vezes de Bordéus transforma qualquer canto da terra do Guarani num Rumpelmeyer, onde não se fala uma sílaba nem de português nem de tupi...