Fonte: As cem melhores crônicas. Organização de Joaquim Ferreira dos Santos,  Objetiva, 2007, pp. 57-61. Publicada, originalmente, em A Notícia, de 25/07/1909.

Dentro de três meses as grandes capitais terão um serviço regular de bondes aéreos denominados “aerobus”. O último invento de Marconi é a máquina de estenografar. As ocupações são cada vez maiores, as distâncias menores e o tempo cada vez chega menos. Diante desses sucessivos inventos e da nevrose de pressa hodierna, é fácil imaginar o que será o dia de um homem superior dentro de dez anos, com este vertiginoso progresso que tudo arrasta... 

O homem superior deitou-se às três da manhã. Absolutamente enervado por ter de aturar uma ceia com champanha e algumas cocotes milionárias, falsas da cabeça aos pés porque é falsa a sua cor, são falsas as olheiras e sobrancelhas, são falsas as pérolas e falsa a tinta do cabelo nessa ocasião, por causa da moda, em todas as belezas profissionais beige foncé. Acorda às seis, ainda meio escuro, por um movimento convulsivo dos colchões e um jato de luz sobre os olhos produzido pelo despertador elétrico último modelo de um truste pavoroso. 

— Caramba! Já seis! 

Aperta um botão e o criado-mudo abre-se em forma de mesa apresentando uma taça de café minúscula e um cálice também minúsculo do elixir nevrostênico. Dois goles; ingere tudo. Salta da cama, toca noutro botão, e vai para diante do espelho aplicar à face a navalha maravilhosa que em trinta segundos lhe raspa a cara. Caminha para o quarto de banho, todo branco, com uma porção de aparelhos de metal. Aí o espera um homem que parece ser o criado. 

— Ginástica sueca, ducha escocesa, jornais. 

Entrega-se à ginástica olhando o relógio. De um canto, ouve-se uma voz fonográfica de leilão. 

— Últimas notícias: hoje, à 1 da manhã, incêndio quarteirão leste, 40 prédios, 700 feridos, virtude mau funcionamento Corpo de Bombeiros. Seguro prédios 10 mil contos. Ações Corpo baixaram. Hoje, 2h12, um aerobus rebentou no ar perto do Leme. As 12h45, presidente recebeu telegrama encomenda pronta Alemanha, 500 aeronaves de guerra. O cinematógrafo Pão de Açúcar em sessão contínua estabeleceu em suportes de ferro mais cinco salas. Anuncia-se o crack da Companhia da Exploração Geral das Zonas Aéreas do Estreito de Magalhães. Em escavações para o Palácio da Companhia do Moto Contínuo foi encontrado o esqueleto de um animal doméstico das civilizações primitivas: o burro. 

Instalou-se neste momento, por quinhões, a Sociedade Anônima das Cozinhas Aéreas no Turquestão. O movimento ontem nos trens subterrâneos foi de três milhões de passageiros. As ações baixam. O movimento de aerobus de oito milhões havendo apenas vinte desastres. O recorde da velocidade: chega-nos da República do Congo com três dias de viagem apenas, no seu aeroplano de course, o notável Embaixador Zambeze. Foi lançada na Cafrária a moda das toilettes pyrilampe feitas de tussor luminoso. Fundaram-se ontem trezentas companhias, quebraram quinhentas, morreram cinco mil pessoas. Com a avançada idade de 38 anos, o Marechal Ferrabraz deu ontem o seu primeiro tiro acertando por engano na cara do seu maior amigo, o venerando Coronel Saavedra. Impossível a cura, aplicou-se a eletrocução... 

Dez minutos. O homem superior está vestido. O jornal para de falar. O Homem bate o pé e desce por um ascensor ao 17° andar, onde estão a trabalhar quarenta secretários. 

Há em cada estante uma máquina de contar, e uma máquina de escrever o que se fala. O Homem superior é presidente de cinquenta companhias, diretor de três estabelecimentos de negociações lícitas, intendente-geral da Compra de Propinas, chefe do célebre jornal Eletro Rápido, com uma edição diária de seis milhões de telefonógrafos a domicílio, fora os quarenta mil fonógrafos informadores das praças, e a rede gigantesca que liga as principais capitais do mundo em agências colossais. Não se conversa. O sistema de palavras é por abreviatura. 

— Desminta S. C. Aéreas. Ataque governo senil vinte nove anos. Some. Escreva.

Os empregados que não sabem escrever entregam à máquina de contar a operação, enquanto falam para a máquina de escrever. 

Depois o Homem superior almoça algumas pílulas concentradas de poderosos alimentos, sobe ao 30° andar num ascensor e lá toma o seu cupê aéreo que tem no vidro da frente, em reprodução cinematográfica, os últimos acontecimentos. São visões instantâneas. Ele tem que fazer passeios de inspeção às suas múltiplas empresas com receio de que o roubem, receio que aliás todos têm uns dos outros. O secretário ficou encarregado de fazer oitenta visitas telefônicas e de sensibilizar em placas fonográficas as respostas importantes. Antes de chegar ao bureau da sua Companhia do Chá Paulista, com sede em Guaratinguetá, o aparelho Marconi instalado no forro do cupê comunica:

— “Mandei fazer quinze vestidos pirilampos. Tua Berta”. 

— “Ordem Paquin dez vestidos pirilampos. Condessa Antônia”.

— “Asilo dos velhos de trinta anos fundado embaixatriz da Argélia completou 12º aniversário. Pede proteção”.

— “Governo espera ordem negócio aeroplanos”. 

— “Casa 29 das Crianças Ricas informa falecimento sua filha Ema”.

— “Guerra cavalaria aérea riograndense cessada fantasma Pinheiro miragem”.

O Homem superior aproveita um minuto de interrupção do trânsito aéreo, pelo silvo do velocipaéreo do civil de guarda da Inspetoria de Veículos no Ar, e responde sucessivamente:

— Sim, sim, sim. Perfeito. Enterro primeira classe comunique Mulher Superior, Cortejo Carpideiras Elétricas. Oculte notícia cavalaria entrevista fantasma.

E continua a receber telegramas e a responder, quer ao ir quer ao voltar da companhia onde se produz um quilo de chá por minuto para abafar a produção chinesa, porque todas as senhoras, sem ter nada que fazer (nem mesmo com os maridos), levam a vida a tomar chá — o que, segundo o Conselho Médico, embeleza a cútis e adoça os nervos. Esse Conselho, decerto, o Homem comprou por muitos milhões e foi até aquela data o único Conselho de que precisou. A ciência super omnia...

Ao chegar de novo ao escritório central das suas empresas, tem mais a notícia da greve dos homens do mar contra os homens do ar. Os empregados das docas revoltam-se contra a insuficiência dos salários: 58$500 por dia de cinco horas, desde que os motoristas aéreos ganham talvez o dobro. O Centro Geral Socialista, de que o Homem superior é superiormente sócio benemérito, concorda que os vencimentos devem ser igualados numa cifra maior que a dos homens do ar. Qual a sua opinião? É preciso pensar! Sempre a questão social! Se houvesse uma máquina de pensar? Mas ainda não há! Ele tem que resolver, tem que dar a sua opinião, opinião de que dependem exércitos humanos. Ao lado da sua ambição, do seu motor interno, deve haver uma bússola, e ele se sente, olhando o ar, donde fugiram os pássaros, igual a um desses animais de aço e carne que se debatem no espaço. Não é gente, é um aparelho. 

Então, esquecido das coisas frívolas, inclusive do enterro da filha, telefona para o atelier do grande químico a quem sustenta vai para cinco anos, na esperança de realizar o sonho de Lavoisier: o homem surgindo da retorta; e volta a trabalhar, parado, mandando os outros, até a tarde. 

Depois, sobe o relógio, ducha-se, veste uma casaca. Deve ter um banquete solene, um banquete de alimentos breves, inventado pela Sociedade dos Vegetaristas, cuja descoberta principal é a cenoura em confeitos. 

O Homem superior aparece, é amável. A sua casa de jantar é uma das maravilhas da cidade, toda de cristal transparente para que poderosos refletores elétricos possam dar aos convidados, por meio de combinações hábeis, impressões imprevistas; reproduções de quadros célebres, colorações cambiantes, fulgurações de incêndio e prateados tons de luar. No coup du milieu, um sorvete amargo que ninguém prova, a casa é um iceberg tão exato que as damas tremem de frio; no conhaque final, que ninguém toma por causa do artritismo, o salão inteiro flutua num incêndio de cratera. Para cada prato vegetal há uma certa música ao longe, que ninguém ouve por ser muito enervante. 

As mulheres tratam negócios de modas desde que não têm mais a preocupação dos filhos. Algumas, as mais velhas, dedicam-se a um gênero muito usado outrora pelos desocupados: a composição de versos. Os homens digladiam-se polidamente, a ver quem embrulha o outro. O Homem, de alguns, nem sabe o nome. Indica-os por uma letra ou por um número. Conhece-os desde o colégio. Insensivelmente, acabado o jantar, aquelas figuras sem a menor cerimônia partem em vários aeroplanos. 

— Já sabes da morte de Ema? 

— Comunicaram-me, diz a Mulher superior. Tenho de descer à terra? 

— Acho prudente. Os convites são feitos, hoje, pelo jornal. 

— Pobre criança! E o governo? 

— Submete-se. 

— Ah! Mandei fazer... 

— Uns vestidos pirilampos? 

— Já sabes? 

— É a moda. 

— Sabes sempre tudo. 

O Homem superior sobe no ascensor para tomar o seu cupê aéreo. Mas sente uma tremenda pontada nas costas. 

Encosta-se ao muro branco e olha-se num espelho. Está calvo, com dentadura postiça e corcova. Os olhos sem brilho, os beiços moles, as sobrancelhas grisalhas. 

É o fim da vida. Tem 30 anos. Mais alguns meses e estalará. É certo. É fatal. A sua fortuna avalia-se numa porção de milhões. Sob os seus pés fracos um Himalaia de carne e sangue arqueja. Se descansasse?... Mas não pode. É da engrenagem. Dentro do seu peito estrangularam-se todos os sentimentos. A falta de tempo, numa ambição desvairada que o faz querer tudo — a terra, o mar, o ar, o céu, os outros astros para explorar, para apanhá-los para condensá-los na sua algibeira, impele-o violentamente. O Homem rebenta de querer tudo de uma vez, querer apenas, sem outro fito senão o de querer, para aproveitar o tempo reduzindo o próximo. Faz-se necessário ir à via terrestre que o seu rival milionário arranjou em pontes pênseis, com jacarandás em jarras de cristal e canaleiras artificiais. Nem mesmo vai ver as amantes. Também, para quê? 

De novo toma o cupê aéreo e parte, para voltar tarde, decerto, enquanto a Mulher superior, embaixo, na terra, procura conservar materialmente a espécie com um jovem condutor de máquinas de 12 anos, que ainda tem cabelos. 

Vai, de repente com um medo convulsivo de que o cupê aéreo abalroe dos formidáveis aerobus, atulhados de gente, em disparada pelo azul fim, aos roncos. 

— Para? — indaga o motorista com a vertigem das alturas. 

— Para frente! Para frente! Tenho pressa, mais pressa. Caramba! Não inventará um meio mais rápido de locomoção? 

E cai, arfando, na almofada, os nervos a latejar, as têmporas a bater, na ânsia inconsciente de acabar, de acabar, enquanto por todos os lados, em parada convulsiva, de baixo para cima, de cima para baixo, na terra, por baixo da terra, por cima da terra, furiosamente, milhões de homens disparam na mesma ânsia de fechar o mundo, de não perder o tempo, de ganhar, lucrar, acabar... 

joao-do-rio