Fonte: As cem melhores crônicas. Organização de Joaquim Ferreira dos Santos, Objetiva, 2007, pp.29-33. Publicada, originalmente, no Correio Paulistano, de 2/10/1910 e, posteriormente, na Gazeta de Notícias, de 30/10/1910.

— Xerez? Coquetel? 

— Madeira. 

Eram sete horas da noite. Na sala cheia de espelhos da confeitaria, eu ouvia com prazer o Pessimista, esse encantador romântico, o último cavalheiro que sinceramente odeia o ouro, acredita na honra, compara as virgens aos lírios e está sempre de mal com a sociedade. O Pessimista falava com muito juízo de várias coisas, o que quer dizer: falava contra várias. E eu ria, ria desabaladamente, porque as reflexões do Pessimista causavam-me a impressão dos humorismos de um clown americano. De repente, porém, houve um movimento dos criados, e entraram em pé de vento duas meninas, dois rapazes e uma senhora gorda. A mais velha das meninas devia ter 14 anos. A outra teria 12 no máximo. Tinha ainda vestido de saia entravada, presa às pernas, como uma bombacha. A cabeça de ambas desaparecia sob enormes chapéus de palha com flores e frutas. Ambas mostravam os braços desnudos, agitando as luvas nas mãos. 

Entraram rindo. A primeira atirou-se a uma cadeira. 

—  Uff! Que já não posso!... 

— Mas que pândega! 

— Não é, mamãe?... 

— Eu não sei, não. Se seu pai souber... 

— Que tem? Simples passeio de automóvel. 

A menor, rindo, aproximou-se do espelho.

— Mas que vento! Que vento! Estou toda despenteada... 

Mirou-se. Instintivamente olhamos para o espelho. Era uma carita de criança. Apenas estava muito bem pintada. As olheiras exageradas, as sobrancelhas aumentadas, os lábios avivados a carmim líquido faziam-lhe uma apimentada máscara de vício. Era decerto do que gostava, porque sorriu à própria imagem, fez uma caretinha, lambeu o lábio superior e veio sentar-se, mas à inglesa, traçando a perna. 

— Que toma? 

— Um chope. 

A outra exclamou logo: 

— Eu não, tomo whisky-and-caxambu

All right

— E a mamã? 

— Eu, minha filha, tomaria uma groselha. O senhor tem? 

— Esta mamã com os xaropes! 

E voltou-se. Entrava um sujeito de cerca de quarenta anos, o olho vítreo, torcendo o bigode, nervoso. O sujeito sentou-se de frente, despachou o criado, rápido, e sem tirar os olhos do grupo, em que só a pequena olhava para ele, mostrou um envelope por baixo da mesa. A pequena deu uma gargalhada, fazendo com a mão um sinal de assentimento. E emborcou com galhardia o copo de cerveja. 

Nem a mim, nem ao Pessimista aquela cena podia causar surpresa. Já a tínhamos visto várias vezes. Era mais um caso de precocidade mórbida, em que entravam com partes iguais o calor dos trópicos e a ânsia de luxo, e o desespero de prazer da cidade ainda pobre. Aqueles dois rapazes, aliás inteiramente vulgares, para apertar, apalpar e debochar duas raparigas, tinham alugado um automóvel, mas tendo nele a mãe por contrapeso. A boa senhora, esposa de um sujeito de certo sem muito dinheiro, consentira pelo prazer de andar de automóvel, pelo desejo de casar as filhas, por uma série de razões obscuras em que predominaria de certo o desejo de gozar uma vida até então apenas invejada. O homem nervoso era um desses caçadores urbanos. A menina, a troco de vestidos e chapéus, iria com ele talvez. 

— É a perdição! — bradou o Pessimista. 

— É a vida... 

— Você é de um cinismo revoltante. 

— E você? 

O Pessimista olhou-me: 

— Eu, revolto-me! 

— E o que adianta com isso? 

— Satisfaço a consciência...

— Que é uma senhora cada vez mais complacente. 

O Pessimista enrouqueceu de raiva. Eu, com um gesto familiar, tirei o chapéu às meninas — que imediatamente corresponderam ao cumprimento. 

— Oh, diabo! Conhecê-las! 

— Nunca as vi mais gordas. 

— E cumprimenta-as? 

— Por isso mesmo: para as conhecer. É que essas duas meninas são, meu caro Pessimista, um caso social — um expoente da vida nova, a vida de automóvel e do velívolo. O homem brasileiro transforma-se, adaptando de bloco a civilização; os costumes transformam-se; as mulheres transformam-se. A civilização criou a suprema fúria das precocidades e dos apetites. Não há mais crianças. Há homens. As meninas, que aliás sempre se fizeram mais depressa mulheres que os meninos homens, seguem a vertigem. E o mal das civilizações, com o vício, o cansaço, o esgotamento, dá como resultado crianças pervertidas. Pervertidas em todas as classes; nos pobres por miséria e fome; nos burgueses por ambição de luxo; nos ricos por vício e degeneração. Certo, há muitíssimas raparigas puras. Mas estas, que se transformaram com o Rio, estas que há dez anos tomariam sorvete, de olhos baixos e acanhados, estas são as modern girls

— Um termo inglês... 

— Diga antes americano — porque americano é tudo que nos parece novo. Antigamente tremeríamos de horror. Hoje, estas duas pequenas são quase nada de grave. Semivirgens? Contaminadas de flirt? Sei lá! É preciso conhecer o Rio atual para apanhar o pavor imenso do que poderíamos denominar a prostituição infantil. Este é o caso bonito — não se aflija — bonito à vista dos outros, porque os outros são sinistros. O que Paris e Lisboa e Londres, enfim as cidades europeias oferecem tão naturalmente, prolifera agora no Rio. A miséria desonesta manda as meninas, as crianças, para a rua e explora-as. Há matronas que negociam com as filhas de modo alarmante. Há cavalheiros que fazem de colecionar crianças um esporte tranquilo. A cidade tem mesmo, não uma só, mas muitas casas publicamente secretas, frequentadas por meninas dos doze aos dezesseis anos. Ainda outro dia vi uma menina de madeixas caídas e meia curta. Olhou-me com insolência e entrou numa casa secreta, que fica bem em frente ao ponto de bonde em que me achava. Estas talvez não façam isso ainda, estas são as eternas pedidas. 

— As eternas pedidas?... 

— Criaturinhas com o trópico, o vício das ruas, o apetite do luxo que não podem ter, criaturinhas que desde o colégio, desde os dez anos se enfeitam, põem pó de arroz, batom e namoram. O lar está aberto aos milhares, como se diria antigamente nos dramalhões. Elas têm um noivo, quando deviam estar a pular a corda. É um rapaz alegre, que lhes ensina coisas, e pitorescamente lhes dá o fora tempos depois, desaparecendo. Logo aparece outro. As meninas, por vício e mesmo porque lhes pareceria deprimente não ter um apaixonado permanente, recebem esse e com ele contratam casamento. Ao cabo de dois ou três meses a cena repete-se e vem terceiro, de modo que é muito comum ouvir nas conversas das pobres mamães: — “A minha filha vai casar”. — “Ah! Já sei, com aquele rapaz alto, louro”? "Não. Agora é com aquele baixo, moreno, que em tempos namorou a filha do Praxedes”... 

— Você é imoral... 

— Estou a descrever-lhe um mal social apenas. Não é assim? É. São as modern girls. E o mesmo fenômeno se reproduz na alta sociedade, com mais elegância, sem a declaração de noivado oficial, mas com um flirt tão íntimo que se teme pensar não ser muito mais... Quais as ideias dessas pobres criaturinhas, meu caro Pessimista? Coitadinhas! Ingenuidade, a ingenuidade do mal espontâneo. Elas são antes vítimas do nome, da situação, do momento, da sociedade. Nenhuma delas tem plena convicção do que pratica. E algum de nós, neste instante vertiginoso da cidade, tem plena consciência, exata consciência do que faz? 

— Estamos todos malucos. 

— Di-lo você! O fato é que de repente nos atacou uma hiperfúria de ação, um subitâneo desencadear de desejos, de apetites desaçaimados. Não é vida, é a convulsão de um mundo social que se forma. O cinismo dos homens é o cinismo das mulheres, seres um tanto inferiores, educados para agradar os homens — vendo os homens difíceis, os casamentos sérios, o futuro tenebroso. As modern girls! Não imagina você a minha pena quando as vejo sorrindo com imprudência, copiando o andar das cocottes, exagerando o desembaraço, aceitando o primeiro chegado para o flirt, numa maluqueira de sentidos só comparável às crises rituais do vício asiático!... Elas são modernas, elas são coquetes, elas querem aparecer, brilhar, superar. Elas pedem o louvor, o olhar concupiscente, como os artistas, os deputados, as cocottes; as palavras de desejo como os mais alucinados títeres da Luxúria. E tudo por imitação, porque o instante é esse, porque o momento desvairante é de um galope desenfreado de excessos sem termo, porque já não há juízo... 

— Virou moralista? 

— Como Diógenes, caro amigo. 

Entretanto, o grupo das meninas e dos rapazes acabara as bebidas. Os rapazes estavam decerto com pressa de continuar os apertões nos automóveis.

— Vamos. Já vinte minutos. 

— Não quer mais nada, mamã? 

— Não, muito obrigada. 

— Então, em marcha. 

— Para a beira-mar! 

— Nunca! — interrompeu um dos rapazes. — Vou mostrar-lhes agora o ponto mais escuro da cidade: o Jardim Botânico. 

— Faz-se tarde. Olha teu pai, menina... 

— Qual! Em dez minutos estamos lá! É um automóvel esplêndido. 

— Partamos. 

O bando ergueu-se. Houve um arrastar de cadeiras. Saiu a senhora gorda à frente. A menina mais velha seguia com um dos rapazes, que lhe segurava o braço. A menina menor também partia acompanhada pelo outro, que lhe dizia coisas ao ouvido. Ficamos sós — eu, o Pessimista e o homem nervoso da outra mesa, o tempo, aliás, apenas para que o homem nervoso se levantasse, e, tomando de um lenço que ficara esquecido na mesa alegre, o embrulhasse com a sua carta... A menor das pequenas voltava, rindo, a dizer alto para fora: 

— Esperem, é um segundo... 

Correu à mesa, apanhou o lenço com a carta, lançou um olhar malicioso ao homem, e partiu lépida, sem se preocupar com o nosso juízo. 

— Essas é que são as ingênuas? — berrou o Pessimista. 

— Há ingênuas e ingênuas. Ingênuas xarope-de-groselha... 

— E ingênuas whisky-and-caxambu

— Exatamente. Esta, porém, é menos que whisky, e mais que xarope —  é o comum das modern girls o que se pode chamar... 

— Uma ingênua coquetel? 

— E com ovo, excelente amigo, e com ovo!

joao-do-rio