Fonte: A mulher do vizinho, 6ª ed., Sabiá, 1972, pp. 183-185.

Comigo era a mesma coisa — disse ele, acomodando-se no carro, a meu lado, ontem, quando eu voltava da Cidade.

Referia-se ao que andei escrevendo há pouco tempo sobre as atribuições de quem tem automóvel.

— E o que aconteceu com o seu?

— Vendi. Era um falso símbolo de prosperidade, responsável pela maioria dos meus inimigos. Todo mundo me supunha rico e às vezes eu não tinha dinheiro nem para a gasolina. Só porque me viam de carro americano... Se ainda fosse destes carrinhos brasileiros — você sabe o apelido deles.

— Sei.

— Pois é: todo mundo tem. Mas é um bom carrinho, não há dúvida: tendo gasolina, ele anda.

— Por falar nisso...

— Não vá me dizer que se esqueceu de botar gasolina. É sempre assim. A gente diz: ponho na volta. Espero que dê. Sempre dá. Mas a preocupação fica. Até que um dia não dá e o carro para mesmo no meio do túnel, como acontecia comigo. A gente desce, fica olhando os outros carros passando sem dar a menor confiança, começa a desejar a desgraça de todos eles, até que surge um de boa vontade, caído do céu por descuido. Quer me dar uma empurradinha? O sujeito olha, diz que os pára-choques não coincidem, e você fica lá, feito palhaço, abrindo os braços dramaticamente para todo mundo que passa. Se tiver alguém mais com você, há de censurar a sua distração, mas nem sempre se lembrará de descer também, para ajudar a empurrar. Você não traz sempre alguém da cidade?

— Sempre. E daqueles que avisam delicadamente: me deixa onde for melhor para você.

— Contanto que seja na porta da casa dele, o que te obriga a uma volta desgraçada e um atraso de mais de meia hora: é lógico que você não vai deixar o sujeito na porta de sua casa, que ele acaba entrando. Principalmente se estiver chovendo. Comigo sempre estava. E o barulhinho?

— Que barulhinho?

— Você não escuta um barulhinho? Há sempre um barulhinho que só o dono do carro escuta. Acaba dando com a gente na oficina. Tem um grilo neste carro, pelo amor de Deus, me tira isso que senão eu acabo louco. Vem o mecânico e em vez de grilo, descobre um defeito no motor. Se for na coroa e no pinhão, você está perdido. Em geral é.

— Por falar nisso... 

— Mas suponhamos que o carro esteja funcionando perfeitamente: estacionar onde? Todos os lugares são proibidos. A multa não é nada: agora tem essa história de “área de reboque”, você já viu a tabuleta? A princípio eu, feito imbecil, pensava que só fosse permitido estacionar reboque, imagine. Pois o que acontece é que rebocam seu carro, já pensou? Sai do trabalho, vai pegar o carro, quedê o carro? Rebocado. A menos que tenha sido roubado — só essa ideia é de tirar o sono. Roubaram o de um amigo meu outro dia. Ele ficou fora de si, sem querer afastar-se do local, teimoso como um jumento, procurando na rua vazia, como se tivesse perdido uma moeda, ou qualquer coisa assim. Até atrás do poste ele olhou.

— Por falar nisso...

— E o problema da garagem? Se guardar na garagem não tira mais, porque a saída estará obstruída por outro carro do edifício. Se deixar na rua, adeus pijama depois do jantar! Terá de sair para guardar o carro, e acaba levando a mulher ao cinema. Já reparou como as mulheres se aproveitam disso para ir ao cinema? Não bastasse baterem sempre a porta com força. Quando não deixam aberta.

— Por falar nisso...

— E sempre há um amigo para lhe dizer: você está precisando de mandar lubrificar este carro. A gente já sabe, mas preferiria que não se tocasse no assunto. Este seu, por exemplo, acho que está precisando. Aliás eu, se fosse você, francamente: vendia este carro.

— Por falar nisso, onde é mesmo a sua casa? 

Ele me olha, muito sério: 

— Me deixe onde for melhor para você.

fernando-sabino