Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, p.141. Publicada, originalmente, no Correio da Noite, de 7/01/1915 e, posteriormente, no livro Vida urbana, Brasiliense, 1956, p.69.

Este caso da parteira merece sérias reflexões que tendem a interrogar sobre a serventia da lei.

Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente também não quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma inclinação amorosa.

O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, baseada em uma moral que já se findou, não lhe tire a filha, procura uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer.

Vê-se bem que na intromissão da “curiosa” não houve nenhuma espécie de interesse subalterno, não foi questão de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade de servir a uma amiga, de livrá-la de uma terrível situação.

Aos olhos de todos, é um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impõe.

Acontece que a sua intervenção foi desastrosa e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, os peritos, a faculdade, e berram: Você é uma criminosa! Você quis impedir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida!

Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justiça, para a chicana, para os depoimentos, para essa via-sacra da justiça, que talvez o próprio Cristo não percorresse com resignação.

A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que não conhecia, amedrontada com a prisão, onde nunca esperava parar, mata-se.

Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas? Sim, duas, porque a outra procurou a morte para que a lei não lhe tirasse a filha. De que vale a lei?

lima-barreto