Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, pp. 115. Publicada, originalmente, no periódico A.B.C., de 14/02/1920 e, posteriormente, no livro Feiras e mafuás, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 51.
Na semana passada os jornais noticiaram um interessante julgado.
Creio que é assim que os arcaizantes jurisconsultos denominavam as decisões de seus tribunais e juízes.
Trata-se de um cidadão de São Paulo que raptou uma moça com quem desejava casar-se. Consumado o casamento natural e adamítico, mesmo assim o pai, que, antes dele, havia negado consentimento para o consórcio burocrático, pretoriano ou eclesiástico, continuou na sua teima, não permitindo que o rapaz “reparasse a falta”, sob a alegação de vários motivos que não vêm ao caso citar. Resolveram pessoas autorizadas pelo Estado internar a moça num asilo, e o cidadão, que tinha as melhores disposições para aumentar o coeficiente de nupcialidade, foi muito juridicamente parar na cadeia, regularmente condenado, porque o seu desejo era casar-se com uma dada e determinada moçoila.
Esse fato jurídico-policial em todo o seu desenvolvimento prestar-se-ia a muitas considerações sutis sobre leis, tribunais e autoridades, se fosse tratado por outra pena que não a minha, inábil e canhestra.
Em todo o caso, porém, eu me animo a dizer alguma coisa, para sugerir a outras inteligências mais capazes que a minha a necessidade de interessar-se por ele e comentá-lo como é merecedor.
Na primeira parte, o pai, que julgava muito mal o seu genro espontâneo, não o queria artificial, por isso o casamento não se efetuou, de acordo com a Lei 142.238 A, de 30 de agosto de 1327, § 7º, letra alfa; permissão de 15 de outubro de 1447; carta régia de 18 de novembro de 1637; resolução da mesa do bem comum, de 2 de fevereiro de 1732; acórdão da Casa de Suplicação de 44 do Ramadã de 1427, da Hégira, etc., etc.
Bem. Toda a legislação romana, arábica, visigótica, portuguesa, etc., etc., dava-lhe poderes bastantes para impedir o matrimônio da filha menor. Concordo, porque, a ter quem me governe, prefiro meus pais a todos os luminares do Catete, do Supremo Tribunal e do Congresso; mas o pai, que tinha esse extraordinário poder, não tinha o menor de dar destino conveniente à sua filha, tê-la em sua companhia, guiá-la para o arrependimento, como autoridade natural que era sobre a moça. Quem teria essa força senão ele? perguntarão os senhores. Deus? Não.
Sabem quem a tinha, acima do pai?
O curador de órfãos. É engraçado!
O pai pode impedir que a filha siga as inclinações do seu sexo, mas não pode tê-la sob a sua guarda e tutela. Quem pode indicar um guarda e um tutor conveniente não é ele; é um funcionário do Estado, que não conhece a moça, que nunca a viu mais gorda, não lhe sabe as qualidades, os defeitos, nem lhe adivinha a força dos sentimentos.
De acordo com a legislação dos iberos e lusitanos, dos carlovíngios e suevos, dos alanos e bizantinos, sobrepondo-se à autoridade paterna, que, no caso, me parece, era pessoa perfeitamente capaz, determina que a moça seja internada numa casa de religiosas sem indagar se a menina gosta dessas coisas de missas e rezas.
O melhor, o mais lógico, era o que acontecia antigamente: os pais podiam meter as filhas, nas mesmas condições que a moça ora em causa ou em outras, no convento. A sua autoridade de pai era completa.
Hoje, com os nossos bizantinismos legais, judiciais e toda essa trapalhada de leis, códigos, portarias, acórdãos, a autoridade paterna é vacilante e incoerentemente exercida.
Uma hora, o pai pode impedir o casamento e o curador de órfãos pode anular a decisão paterna; outra hora, o pai impede como na sua primeira fase deste caso, mas logo vem o bacharel curador de órfãos, quando a paciente não era órfã, e grita tendo na mão todos os digestos de todas as legislações passadas, presentes e futuras de todas as nações do mundo:
– Você tem o direito de pôr impedimentos ao casamento da pequena, mas quem lhe indica a moradia sou eu. Você é pai para empatar o consórcio, mas não o é para dar comida e casa à filha. Quem dá o ensino não dá o pão.
É uma decisão das mais extraordinárias que se pode conceber e esperar em matéria de lógica. Os raciocínios se articulam aí tão perfeitamente para se chegar a conclusão tão fatal que, creio, nem na geometria do velho Euclides se encontrará demonstração tão rigorosamente arquitetada e perfeita.
Continuemos, porém, a estudar o caso do rapto de São Paulo.
O pai, que não queria a filha no asilo, veio afinal a dar o seu consentimento para o matrimônio.
Parecia que a causa estava resolvida; as autoridades jurídicas, porém, que até aí tinham julgado como único impedimento para se efetuar o consórcio a oposição do pai, vetaram o negócio.
Então, o “velho”, a filha e o genro de fato ligaram-se e pediram habeas-corpus para legalizar a união consumada dos dois últimos. Nesse ponto, começam a entrar os luminares da ciência jurídica; e o Tribunal Superior de Justiça de São Paulo, consoante um embrulho de leis enumeradas até o infinito, nega o habeas-corpus, para que os pacientes realizem uma coisa que, quase sempre, os simples delegados obtêm, mais ou menos sob ameaças.
Toda essa barulhada que não quero esmiuçar mais vem mostrar que, além de inúteis, muitas dessas leis são contraditórias, umas destruindo as outras, e concorrem não para simplificar a nossa vida e as nossas relações sociais, mas para complicá-las, obscurecer o que é claro e, quase sempre, dar razão a quem não a tem, mas que pode dispor de argumentadores e trapalhistas jurídicos de profissão, que se fazem pagar caro.
Não é este o caso do habeas-corpus de que trato; mas outros exemplos mais eloquentes e elucidativos do que afirmo devem existir e existem por aí. É ter paciência de procurá-los.
O que se chama – “saber jurídico” – mete-me mais medo do que toda a ciência astrológica dos antigos; e se me ameaçassem de morte para estudar-lhe um pedaço que fosse, eu preferia mesmo morrer.
Quando será que os homens se hão de convencer da inutilidade e da importância de leis que só servem para complicar a sua existência e esmagar os fracos?