Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I p.125. Publicada, originalmente, no Correio da Noite, de 21/12/1914 e, posteriormente, no livro Coisas do reino de Jambon, Brasiliense, 1956, p.75.

Nota-se, de uns tempos a esta parte, graças à critica histórica, difundida por todas as formas e meios, que o patriotismo é um sentimento que vai morrendo, e, se ainda é mantido e cultuado em certas partes do mundo, é devido unicamente à necessidade de defesa contra a vizinhança de países arrogantes, em que os charlatães do Estado, em nome da pátria e de estúpida teoria de raças, instilaram na massa ignara das populações sentimentos guerreiros de agressão contra os quais nos devemos precaver, como se de cães danados fossem.

A pátria é uma ideia religiosa e de religião que morreu, desde muito. Ela nasceu da crença de que os nossos mortos continuavam vivos de certa forma, nos lugares em que habitaram, e precisavam de que os alimentássemos e lhes fizéssemos sacrifícios expiatórios para que não perturbassem os nossos trabalhos de vivos.

Quanto à raça, os repetidores das estúpidas teorias alemãs são completamente destituídos das mais elementares noções da ciência, se não saberiam perfeitamente que a raça é uma abstração, uma criação lógica, cujo fim é fazer o inventário da natureza viva, dos homens, dos animais, das plantas, e que, saindo do campo da história natural, não tem mais razão de ser.

Lamarck, que entendia muito bem dessas coisas e não tratou nunca de vender a sua camelote, diz, na sua Filosofia zoológica, que a natureza não formou realmente nem classes, nem ordens, nem espécies constantes, mas unicamente indivíduos, que se sucedem uns aos outros, e que se assemelham àqueles que os têm produzido.

Essas duas ideias não podem, pois, de modo algum, justificar a existência do Deus-Pátria, que, como todos os deuses, vai morrendo lenta e mansamente, de uma morte sem dor nem agonia.

Entretanto, entre nós, há uma recrudescência de patriotismo, mas patriotismo regional.

As questões de limites entre os estados tomam um aspecto ao mesmo tempo irritante e jocoso, de contendas entre países de verdade.

O Brasil e a França concordaram em submeter uma questão que tiveram, a respeito dos seus limites, a um certo árbitro, e a sentença foi aceita por ambas as partes litigantes, com toda a serenidade.

Os estados do Brasil, como Paraná e Espírito Santo, pronunciadas as sentenças, não as querem observar e dão o triste espetáculo de uma falta de compostura e respeito pelos tribunais a que se submeteram, indigna de nosso tempo.

De quando em quando, em um deles há uns assomos belicosos, partem expedições, e as damas da capital, como se se tratasse de Berlim ou Paris, correm ao palácio do governador e oferecem os seus serviços nas ambulâncias para fazer pendant aos entusiásticos batalhões patrióticos que se formam.

Penso que essa gente deixou de ser absolutamente brasileira, para ser paranaense ou espírito-santense e esqueceu que Paraná, Santa Catarina, Ceará ou Mato Grosso são divisões político-administrativas do Brasil e não Pátrias, tanto mais que a Constituição permite que elas se subdividam, de acordo com as regras que estabelece.

Penso eu... 

lima-barreto