A conversa corria amena naquela casa, enquanto os três casais tomavam um aperitivo, aguardando o jantar. Foi quando um dos convidados pediu silêncio e comunicou que iria contar um caso sensacional. Exatamente assim:
— Atenção todo mundo, calem a boca que eu vou contar um caso sensacional.
Todo mundo se calou. Ele começou o seu caso dizendo que havia comprado uma filmadora super-8 marca “Canon”. O outro convidado encaixou logo um comentário:
— Boa câmera. Mas a melhor é aquela francesa, como é mesmo que se chama?
— Eu sei — tornou o primeiro, aborrecido: — Aliás, é a que eu pretendia comprar, só que não encontrei. Chama-se... Espera que eu já te digo.
Ficaram os dois concentrados, à procura do nome esquecido. As mulheres ameaçaram começar uma conversa à parte, mas foram fulminadas pelo olhar de um deles. Resolveram colaborar, prestimosas:
— Estou com o nome aqui na ponta da língua — disse uma.
— Kodak — disse outra.
— Calem a boca — cortou um dos homens, e voltou-se para o dono da casa: — Você também já andou lidando com super-8, deve saber.
— Estou cansado de saber. Uma câmera francesa. Tem super-8 e tem de 16. Se não me engano, tem até de 35. Só que não consigo me lembrar.
E os três em silêncio, revirando a memória pelo avesso, como se o destino de cada um dependesse daquela palavra perdida. Um deles se dirigiu resolutamente ao telefone e ficou tentando em vão localizar algum amigo que os ajudasse a desencalhar a conversa:
— O Marcos Vasconcelos deve saber.
Dali por diante nada mais conversaram, e o jantar transcorreu em silêncio, entrecortado apenas pelo queixume das mulheres:
— Que coisa mais sem graça...
— Por que vocês não desistem?
— Parecem três idiotas.
O dono da casa, boca aberta e olhos cravados no ar, parecia mesmo um débil mental. Acabou deixando escapar, com voz roufenha:
— Parece com o nome de um escritor francês... Começa com B.
— Balzac! — exclamou, triunfante, uma das mulheres. — Os três homens a olharam, intrigados, como se estivessem diante de um estranho animal. Já não comiam: tendo perdido o apetite, imóveis como estátuas em suas cadeiras, cada um em posição mais extravagante que a do outro, pareciam siderados pela angustiosa busca nos abismos do esquecimento. A certa altura um deles levou lentamente as duas mãos à cabeça e saiu caminhando como se carregasse uma abóbora, foi trancar-se no banheiro. Molhou o rosto, e olhou-se ao espelho, enquanto forçava a memória como se quisesse expelir da mente um corpo estranho. Soltou um suspiro de desistência e simultaneamente viu seu rosto iluminar-se num sorriso: acabava de surpreender a palavra passando fugaz pelo fundo da memória, por pouco não a segurou pelo rabo como a uma lagartixa. Só ficou na lembrança uma sílaba:
— Bô... Bô...
Saiu do banheiro às pressas, para comunicar aos outros dois:
— Bô! Bô! Bô! – repetia, a instigá-los, sacudindo os punhos cerrados no ar: — Começa com bô!
— Isto! Isto! — saltou um deles, excitado.
— Boileau? — arriscou-se o outro.
— Quase! Boileau é o escritor francês.
Deixou-se cair na cadeira, exausto. De súbito se abriu num sorriso beatífico e os outros dois viram sair de sua boca, como numa história em quadrinhos, um balãozinho com a palavra procurada, em letras de ar. Saltaram sobre ele:
— Fala! Fala!
Ele pediu calma com as mãos espalmadas para a frente, respirou fundo, limpou a garganta e falou de mansinho:
— Beaulieu...
Sentiu como se tivesse feito um gol, saudado num só grito pelos outros dois.
Serenados os ânimos, pediram ao dono da câmera que contasse enfim o seu caso sensacional. Mas ele confessou que não podia: havia se esquecido.