Fonte: O homem nu, 24ª ed.  Rio de Janeiro, Record, 1984, pp. 102-105.

Quem vai a Bruxelas não pode deixar de ir a Gand. E quem vai a Gand não pode deixar de ir à igreja de Saint Bavon, para ver o “Agneau Mistique” de Van Eyke, conforme recomenda o Guide Bleu. Descrever o que foi para mim a visão desta obra-prima da pintura flamenga passaria muito além de minha capacidade.

Com este humilde pensamento, ia saindo da igreja ainda meio perplexo, quando uma velhinha me abordou, estendendo a mão. Cheguei a pensar que ela pedisse uma esmola, mas Otto, que logo se juntou a mim, desfez o equívoco:

— Ela está querendo que a gente suba à torre da Igreja.

Realmente, atrás da velha uma portinha dava acesso à escada circular.

— Para quê?

— Para uma vista da cidade — acudiu a velha, sorrindo como uma bruxa: — São apenas cinco minutos.

— Quantos degraus?

— Cinco minutos — a megera repetiu, meneando a cabeça.

— Estamos querendo saber quantos degraus — insistiu meu companheiro, mal-humorado.

— Os senhores vão num instante! Eu mesma subo quatro vezes por dia, não sinto nada. E na minha idade...

— Se ela não disser quantos degraus, eu não subo — adverti.

Voltamos a insistir e a bruxa acabou confessando que eram quatrocentos degraus.

— Quatrocentos degraus?! 

— Essa velha está me tomando por imbecil — disse meu companheiro, irritado.

Não vamos subir. Vamos. Não vamos. Vista da cidade, não custa nada, mas você já pensou o que são quatrocentos degraus? A velha nos estendia os bilhetes:

— Cinco francos cada um.

Custava alguma coisa, pois: além do mais, teríamos de pagar para subir. Era muito degrau para tão pouca vista — eu pensava comigo, mas Otto, num impulso insensato, já comprava os bilhetes:

— Vamos subir, não é isso mesmo? Praticar um ascetismozinho de vez em quando não faz mal a ninguém.

E foi-se embarafustando pela portinha, escada acima. Não tive alternativa senão segui-lo:

— Estou com a impressão de que vamos nos arrepender amargamente.

— São Bavão que nos proteja — gritou ele lá na frente.

Não subíramos ainda cinquenta dos estreitos e escuros degraus em espiral e já botávamos a alma pela boca:

— Você continua sozinho, eu fico por aqui mesmo! — Adverti, para os passos já trôpegos que me antecediam.

— Faltam só trezentos e cinquenta! — Ouvi uma voz bafejada de cansaço a estimular-me. Agarrei-me como pude ao corrimão enferrujado e prossegui. Fosse tudo pelo amor de Deus. Em pouco encontrava meu desventurado amigo se arrastando como um lagarto, escada acima:

— Ai, que não posso mais, aquela velha desgraçada — bufava, a cada degrau vencido: — Meu coração vai estourar.

— Faltam só trezentos — articulei a custo, e fui passando. Logo era ele que me encontrava prostrado num desvão da torre cada vez mais estreita, como um morcego velho no seu nicho:

— Que é que há, velhinho? — Vingou-se, passando por mim, curvado como o corcunda de Notre-Dame: — Faltam só duzentos....

Chegamos afinal ao alto da torre, e éramos dois anciãos de oitenta anos de idade, nas garras de uma violenta crise de falta de ar — em lugar nenhum do mundo se respira ar mais puro do que no alto da torre da Igreja de Saint Bavon, em Gand.

— Subimos aqui em cima para ver o quê?

— O guia diz que tem outra igreja de torre ainda mais alta. Só que com elevador...

— Essa você podia ter me contado lá embaixo, não podia?

Estourávamos de irritação contra a velhinha, e Raskolnikoff seria um anjo de candura ante nosso impulso de assassiná-la com todos os requintes de crueldade, assim que chegássemos lá embaixo.

Se chegássemos.

Mas para baixo todos os santos ajudam: despencamos pela escada, depois de riscar nosso nome no cimento do parapeito com a chave do carro, para que ninguém jamais pudesse negar que lá tivéssemos subido. E, tínhamos certeza, éramos os primeiros a fazê-lo, depois dos construtores, no século XII: para mim, a bruaca que nos induzira em tentação ali estava, como num conto de Kafka, desde a Idade Média, exclusivamente para apanhar-nos.

Quando demos com ela novamente, finda a descida, mal podíamos conosco, de modo que não tivemos ocasião de beber-lhe o sangue, como era nosso intento — embora meu companheiro a distinguisse com um grosso palavrão, em sonoro e castiço português. Trôpegos como dois dromedários, fomos saindo e só então Otto descobriu que deixara lá em cima a chave do carro.

— E agora?

Agora nos tornaríamos cidadãos gandenses, ou gandinos, se fosse preciso, mas não havia força humana que nos fizesse voltar. Amaldiçoamos de novo a velhinha coroca que nos fizera de cretinos, a cidade, a Bélgica, a Europa inteira. Mas era preciso fazer alguma coisa!

— Procura bem — adverti, já disposto a deixá-lo ali e voltar de trem.

Poderia terminar o relato dizendo que acabamos tendo de subir à torre novamente, para buscar a chave — mas ninguém me acreditaria. Prefiro dizer que meu indignado companheiro procurou bem, como eu recomendara, e, depois de virar todos os bolsos pelo avesso, acabou encontrando a chave.

— São Bavão seja louvado! — Exclamou.

fernando-sabino