Fonte: O homem nu, 24ª ed. , Record, 1984, pp. 17-23.
O esquadrão de Cavalaria estava acampado junto ao rio das Mortes. Era hora do rancho e já nos muníamos de nossos pratos de folha, quando foi dado o alarma:
— Atenção! Bombardeiro inimigo!
Tínhamos camuflado as barracas com ramos de árvore. Os cavalos estavam... Onde estavam mesmo os cavalos? Agora me lembro, não havia cavalos, tínhamos vindo em caminhões, os cavalos seguiram de trem, para nos esperar em Barbacena. Corremos todos, seguindo as instruções, para os abrigos cavados na terra. O bombardeiro inimigo, um teco-teco da base aérea de São João del-Rei, deixou cair meia dúzia de bombas, que eram sacos de papel cheios de cal, e foi-se embora. A bateria antiaérea fez fogo. Passado o perigo, o rapaz da metralhadora apresentou-se ao capitão:
— Inimigo neutralizado, comandante.
— Abatido? — Perguntou o capitão, a cara mais séria deste mundo.
— Quem, eu?
— O avião, sua besta.
— Não: recebeu impactos diretos na asa e na cauda.
Meninos brincando de guerra. Finda a brincadeira, saímos para o rancho e descobrimos, consternados, que o inimigo havia acertado em cheio uma bomba de cal na carroça de cozinha, exatamente dentro do caldeirão de feijão. Fora-se o nosso almoço.
— Isso eles fizeram de propósito — protestaram alguns, mostrando os punhos indignados para o teco-teco que se perdia no horizonte.
O pessoal da bateria antiaérea saiu à caça, matou um tatu e comeu. Nós ficamos sem comer.
Depois foi o avanço noturno para fazer frente ao inimigo. O inimigo era o 10º Regimento de Belo Horizonte, o 12º Regimento de São João del-Rei e os Caçadores da Bahia. Nunca chegamos a ver estes famosos Caçadores, mas falava-se muito — diziam que eles iam nos liquidar. Os outros estavam em toda parte. As colunas do 12° a nós se misturavam na estrada, buscando uma posição onde nos combater. Os comandantes se desentendiam:
— Suma com sua tropa! Tudo junto assim não é possível.
— Veja lá como fala. Você é inimigo! Prendo todo mundo e acabo com a guerra.
— Pois então prende! É um favor que você me faz.
Chovia, marchávamos em plena lama, ninguém se entendia. Dentro da noite apareceu um coronel a cavalo para avisar ao nosso comandante que os Caçadores da Bahia haviam perdido o rumo, àquelas horas deviam ter ultrapassado Minas Gerais e já estariam próximos do Rio Grande do Sul. Nosso comandante disse que não tinha nada com isso porque os Caçadores da Bahia eram inimigos — descobriu-se então que o coronel a cavalo era inimigo também.
— Sabe de uma coisa? O senhor está preso.
Prendeu-se o coronel e arrecadou-se o seu cavalo.
A coluna progredia pela estrada, mas já nos engavetáramos definitivamente na retaguarda de um pelotão de viaturas. As viaturas eram nossas, e as deixaríamos de bom grado para o inimigo, pois não progrediam: as carretas atolavam-se na lama e dois muares, errando a direção de uma ponte, haviam precipitado um pesadíssimo canhão dentro do rio. O aspirante Helvécio tocou-me o braço, chamou-me a um canto:
— Nosso pessoal já sumiu. Não sei quem é essa gente. Tem um capitão ali querendo me requisitar para seu ajudante de ordens. Essa guerra está ficando chata. Vamos cair no mato?
Caímos no mato, deixando para trás a estrada. Nosso plano era descobrir um abrigo para a chuva, aguardar o amanhecer e rumar diretamente para Santana, onde ia ter nossa unidade. Andamos no mato a noite inteira. A certa altura Helvécio foi passar debaixo de uma goiabeira, abriu caminho, largou um ramo na minha cara.
— Estou ferido! — Berrei.
A princípio pensei que o ramo me tivesse vazado o olho. Helvécio saiu a guiar-me como um cego, resolveu ganhar de novo a estrada. Apareceu um major de automóvel:
— Este aspirante foi ferido em combate — disse-lhe meu amigo.
— Azul ou Vermelho? — Perguntou o major.
— Azul.
Então entrem.
Éramos do Exército Azul. Passamos por uma localidade onde soubemos que uns aspirantes de cavalaria haviam conquistado o botequim e requisitado o estoque de cigarros “Alerta”.
— São eles — reconhecemos logo. — Não devem estar longe.
*
Prosseguimos viagem, mas logo adiante o automóvel foi detido, com major e tudo: caíramos em mãos dos Vermelhos. Sem nada poder ver, eu identificava, entretanto, uma voz conhecida.
— Helvécio, veja quem é esse sujeito que prendeu o major.
Helvécio foi ver e voltou, exultante:
— É o Capitão Nélson!
Isso queria dizer que, pelo menos, não seríamos fuzilados: o Capitão Nélson fora nosso instrutor no CPOR e agora, ainda que inimigo, daria tratamento condigno aos seus prisioneiros. Fui examinado pelo tenente-veterinário, recebi um tampão no olho e uma ordem escrita para recolher-me ao Hospital de Fogo, em Juiz de Fora.
— E agora?
Pedimos ao Capitão Nélson que nos deixasse fugir, mas ele se indignou. Atingimos uma cidadezinha ao amanhecer, fomos recebidos em festa.
— Há um ferido — diziam, apontando-me.
Providenciaram para mim uma cama e fui dormir. Acordei às duas horas da tarde — já não havia um só militar na cidade.
— Todos fugiram — me disse um velho à porta da venda — e esqueceram o senhor. O inimigo vem aí.
— Então são amigos. Eu sou Azul.
Invejei a sorte de Helvécio, que se fora embora, feito prisioneiro do Capitão Nélson. Deram-me de comer, ofereceram-me um carro de boi para me conduzir até São João del-Rei. Um carro de boi levaria um mês para chegar a São João del-Rei.
— Muito obrigado — disse. — Prefiro ir a pé mesmo.
*
Fiquei rondando pelo lugarejo, olhado por todos com piedade, sentindo-me Miguel Strogoff, barba por fazer, sujo e cansado. “Cego de um olho”, pensava, e tinha vontade de chorar. Talvez se eu fingisse de mendigo poderia ficar espionando o invasor. A essas alturas, por causa do Capitão Nélson, já me sentia Vermelho também. A mocinha da farmácia se ofereceu para pingar colírio. Considerei por um instante a possibilidade de me apaixonar por ela para o resto da vida, mas o dente de ouro do seu sorriso afastou logo essa ideia infeliz. Não havia esparadrapo. Passaram-me uma faixa de gaze pela cabeça, cobrindo o olho ferido, e ingressei definitivamente num filme sobre a guerra franco-prussiana. Apoiado num bordão, encetei minha viagem pelas longas estradas de Minas. Depois de duas horas de marcha, atingi o carro de boi.
Aboletei-me ao lado do carreiro e lá fomos nós, rinchando pachorrentamente por este mundo afora. O homem me contou que os soldados tinham acabado com a safra de laranjas daquele ano, na fazenda de seu patrão.
— C’est la guerre — limitei-me a comentar. Ele concordou e passou a olhar-me com respeito.
*
Uma camioneta apontou ao longe. Quem a dirigia era um sargento — inferior, portanto. Requisitei a camioneta, ainda que o sargento protestasse, dizendo que levava munição de boca da Intendência de São João para a tropa.
— Azul ou Vermelho?
— Vermelho.
Então é presa de guerra. Sou Azul.
Fiz a camioneta voltar, deixamos para trás o carro de boi. A munição de boca era um saco de farinha. Morto de fome, enchi uma cuia e pus-me a comer. Em pouco, entalado de farinha, pedi água.
— Água? — E o sargento pôs-se a rir.
Cheio de farinha até o pescoço, eu mal podia falar. A camioneta caiu num atoleiro, não havia jeito de sair. Duas horas depois surgiu a nossa salvação: o carro de boi que eu desprezara. Rebocamos a camioneta com a junta de bois — o carreiro me deu um gole de cachaça para fazer descer a farinha.
— Vamos em frente! — Comandei.
Eram cinco e meia da tarde quando demos entrada em São João del-Rei. Mal tive tempo de tomar uma garrafa de água mineral no botequim da esquina e rumar para o campo de aviação.
— Quem está vencendo? — Perguntou-me um gaiato.
Encontrei um tenente dos... Caçadores da Bahia. Estava vestido de tenente mesmo, como qualquer um de nós:
— Vim parar aqui não sei como. Você não quer me prender, por favor? Isso é uma esculhambação, aqui é território inimigo e ninguém me prende. Acabo respondendo a Conselho de Guerra como desertor.
— Quer ser meu anspeçada? — Sugeri.
— Anspeçada? — Ele se aprumou: — Sou tenente! E esse posto nem existe mais.
— Então dane-se.
E fui-me embora. No campo de aviação fiquei aguardando o avião, que tinha ido bombardear as linhas de frente. Um capitão médico me examinou o olho:
— A coisa está preta — limitou-se a dizer.
Em pouco chegava o avião, mas o piloto, das hostes adversárias, foi para casa jantar. O Tenente Álvaro, do Aeroclube, se dispôs a levar-me. E levou mesmo — mas como! Os leitores me desculpem, mas terei de voltar a este Tenente Álvaro, para denunciá-lo à Nação.