Fonte: O homem nu, 24ª ed.  Rio de Janeiro, Record, 1984, pp. 41-46.

 A porta estava aberta. Foi só eu surgir e arriscar uma espiada para a sala, o dono da casa saltou da mesa para receber-me:

— Vamos entrar, vamos entrar. Estávamos à espera do senhor para começarmos a reunião: o senhor não é o 301? 

Não, eu não era o 301. Meu amigo, que morava no 301, tivera de fazer repentinamente uma viagem, pedira-me que o representasse.

O homem estendeu-me a mão, num gesto decidido:

— Pois então muito prazer.

Disse que se chamava Milanês e recebeu com um sorriso à milanesa a minha escusa pelo atraso. Desconfiei desde logo que fosse meio surdo — só mais tarde vim a descobrir que seu ar de quem já entendeu tudo antes que a gente fale não era surdez, era burrice mesmo.

Conduziu-me ao interior do apartamento onde várias pessoas, umas 11 ou 12, já estavam reunidas ao redor da mesa. À minha entrada, todos levantaram a cabeça, como galinhas junto ao bebedouro. O apartamento era luxuosamente mobiliado, atapetado, aveludado, florido e enfeitado, nesta exuberância de mau gosto a que se convencionou chamar de decoração. O Milanês fez as apresentações:

— Aqui é o Dr. Matoso, do 302. Quando precisar de um médico... Ali o Capitão Barata, do 304 — representante das gloriosas Forças Armadas. Dona Georgina e Dona Mirtes, irmãs, não se sabe qual mais gentil, moram no 102. Aquele é o Dr. Lupiscino, do 201, nosso futuro síndico...

Suas palavras eram recebidas com risadinhas chochas, a indicar que vinha repetindo as mesmas graças a cada um que chegava. Cumprimentei o médico, um sujeito com cara mesmo de Matoso, o capitão com seu bigodinho ainda de tenente, as duas velhas de preto, não se sabia qual mais feia, o futuro síndico, os demais. O dono da casa recolheu a barriga e as ideias, sentando-se empertigado à cabeceira. Busquei o único lugar vago do outro lado e acomodei-me. A mulher do Milanês passou-me um copo de refresco de maracujá — só então percebi que todos bebericavam refresco em pequenos goles, aquilo parecia fazer parte do ritual, convinha imitá-los. Um dos presentes, solene, papel na mão, aguardava que se restabelecesse a ordem para prosseguir.

— Desculpem a interrupção — gaguejei. — Podem continuar.

— Não havíamos começado ainda — escusou-se o Milanês, todo simpaticão. — Estávamos apenas trocando ideias.

— Se o senhor quiser, recomeçamos tudo — emendou a Milanesa, mais prática. — Ali o nosso Jorge, do 203, dizia que precisávamos...

— Perdão, quem dizia era o dr. Lupiscino — e o nosso Jorge do 203, um rapaz roliço como uma salsicha de óculos, passou para o extrema. A esta altura interveio o capitão, chutando em gol:

— Pode prosseguir a leitura. 

Alguém a meu lado explicou:

— O dr. Lupiscino fez um esboço de regulamento. O senhor sabe, um regulamento sempre é necessário...

O dr. Lupiscino pigarreou e leu em voz alta:

— Quinto: é vedado aos moradores.... Espere — voltou-se para mim: — O senhor quer que leia os quatro primeiros?

— Não é preciso — interveio o Milanês: — Os quatro primeiros servem apenas para introduzir o quinto. Vamos lá.

— Quinto: é vedado aos moradores guardar nos apartamentos explosivos de qualquer espécie...

O capitão se inclinou, interessado:

— É isso que eu dizia. Este artigo não está certo: suponhamos que eu, como oficial do exército, traga um dia para casa uma dinamite...

— O senhor vai ter dinamites em casa, capitão? — Espantou-se uma das velhas, a Dona Mirtes.

— Não, não vou ter. Mas posso um dia cismar de trazer ...

— Um perigo, capitão!

— Meu Deus, as crianças — e uma senhora gorda na ponta da mesa levou a mão à peitaria.

— Pois é o que eu digo: um perigo — tornou o capitão. — Devíamos proibir.

— Pois então?

Ninguém entendia o que o capitão queria dizer. Ele voltou à carga:

— E imagine se um dia a dinamite explode, mata todo mundo! Não, é preciso deixar bem claro no regulamento: “NÃO é vedado ter em casa explosivos de qualquer espécie”...

— NÃO é vedado? Quer dizer que pode ter? — Desafiou o autor do regulamento, já meio irritado.

— Quer dizer que não pode ter explosivos — respondeu o capitão, quase a explodir.

O capitão não sabia o que queria dizer a palavra vedado — e dali não passariam nunca se o Jorge, do 203, não tivesse levantado a lebre:

— Vedado é proibido, capitão. Vedado explosivo: proibido explosivo.

— Vedado proibido? 

Confundia-se, mas não dava o braço a torcer:

— Eu sei, mas acho que devíamos deixar mais claro que é proibido. Isto de explosivo é perigoso, vedado só é pouco, se vamos proibir, é preciso a palavra NÃO. Para dar mais ênfase, compreendem? NÃO é vedado...

— Continue — ordenou o Milanês.

O capitão, vedado pela própria ignorância, calou o bico. O dr. Lupiscino continuou a leitura e em pouco já ninguém estava prestando atenção: todos concordavam com a cabeça ao fim de cada artigo, quando o homem corria os olhos pela sala, para recolher aprovação. O Milanês, a certa altura, sugeriu que interrompessem o regulamento em favor da eleição do síndico — já se fazia tarde e dali haveria de sair um síndico naquela noite. A Milanesa se aproveitou para ir lá dentro buscar mais refresco.

— Sugiro que aclamemos o nome do dr. Lupiscino para síndico — disse uma das velhas, desta vez a Dona Georgina.

Todos aprovaram, menos o Milanês que, pelo jeito, queria ser síndico também.

— Estamos numa democracia — falou, tentando o engraçadinho: — E sem desfazer os méritos ali do nosso preclaro dr. Lupiscino, acho que devemos lançar mão da mais importante das instituições democráticas: o voto secreto.

— Não precisa ser secreto — sorriu o Lupiscino, certo da vitória: — Somos poucos, todos conhecidos, quase uma família...

— Que acha o 301? — Perguntou-me o Milanês, tentando conquistar o meu voto. Eu, porém, incorruptível, votaria no Lupiscino — a menos que a dona da casa, até o momento da eleição, se lembrasse de servir-me alguma coisa além de refresco de maracujá.

Disse-lhe que preferia não intervir, já que apenas representava um dos proprietários.

— O senhor não é condômino? — Estranhou a bem nutrida senhora da ponta da mesa. — Então quem é que está em cima de mim? Eu sou 202.

Expliquei-lhe que não era condômino — esta palavra era uma das razões pelas quais até então não tivera coragem de comprar um apartamento.

— Estou representando o 301. Em cima da senhora deve estar ali o dr. Matoso, que, se ouvi bem, é 302.

Dr. Matoso sorriu amável, concordando: 

— Faço muito barulho, minha senhora?

— Absolutamente — protestou ela, levando de novo a mão ao peito. — Mal ouço o senhor à noite descalçando os sapatos e botando os chinelos...

— A senhora é 202? — Perguntou uma das velhas, novamente a Dona Mirtes. — Pois então seu ralo deve estar entupido: está pingando água no banheiro da gente.

A outra velha confirmou silenciosamente com a cabeça a acusação terrível. Enquanto isso o Milanês providenciava a votação: cortou lenta e caprichosamente uma folha de papel em 12 pedaços, distribuiu-os a cada um de nós:

— E a urna? Onde está a urna?

A urna seria um horrendo vaso de alabastro. Nos solenizamos ao redor da mesa, exercendo o sagrado direito de voto. Procedeu-se à apuração e o vencedor foi mesmo o dr. Lupiscino, do 201, por esmagadora maioria: o Milanês ganhou apenas um voto, o seu próprio, naturalmente. E a Milanesa? Eu também, 301, ganhei um voto — mas não foi dela, desconfio que foi da senhora do 202, a do ralo entupido, que me proporcionava olhares à socapa. Felicitei o novo síndico, escusei-me e caí fora: ameaçavam retornar ao regulamento, e o capitão dizia:

— Por “áreas comuns” entenda-se: escada, corredores, vestíbulo, entrada de serviço, garagem. E elevador, que é próprio, mas também não deixa de ser comum...

À saída notei, de passagem, que o edifício não tinha elevador.

fernando-sabino