Ao acabar de escrever hoje, como sempre, vou acender um cigarro. Só que este será o último.
Assim eu quereria o meu último cigarro...
Sempre que me vejo sem cigarros, ponho-me a parodiar o verso de Manuel Bandeira. Mas desta vez não se trata de poesia, nem do cigarro que fumarei antes de dormir: trata-se do último mesmo, o último dos últimos, o derradeiro, até o final dos tempos, que jamais fumarei nesta minha longa e, embora às vezes atormentada, boa vida, até exalar o último suspiro.
Quando digo que já deixei várias vezes de fumar, provoco sorrisos escarninhos ao redor, como se estivesse repetindo o velho dito espirituoso atribuído a Mark Twain, Bernard Shaw, Churchill, sei lá quem — nada mais fácil, já haviam deixado várias vezes. Modéstia à parte, eis que também o fiz, e daí? Jamais, todavia, com a declarada disposição, como agora, de que seja para sempre.
Deixar de fumar. Conheço um que deixou durante três anos. Um dia viu Humphrey Boggart juntar os dedos em torno de um cigarro e, a mão em concha, levá-lo à boca, tirar uma daquelas tragadas de encher a alma até o rabo e depois dizer para Lauren Bacall, soltando fumaça pela boca e pelo nariz:
— I want you, kid.
Saiu do cinema, comprou um maço de Hollywood e até hoje está fumando um cigarro atrás do outro.
Vale relembrar o que andei escrevendo então:
Aqui está o homem que deixou o cigarro para sempre. Mais um dia sem fumar! — diz ele, satisfeito, se olhando ao espelho antes de ir dormir. Sabe a data precisa: desde o dia 11 de outubro de 1978 (às três e cinco da manhã). Com isso são exatamente nove meses. Está para nascer.
Está para nascer o homem novo, sem sarro nos dentes ou nos dedos, e sem úlcera de estômago, distúrbio das coronárias, enfisema pulmonar. Vai até a janela e respira fundo o ar puro da noite, batendo com as mãos espalmadas no peito. Vem-lhe a lembrança dos tempos em que a essa hora fumava ali na janela o último cigarrinho antes de se meter na cama —lembrança que ele afasta como fumaça, sacudindo a mão no ar. No fundo sabe que nunca mais será o mesmo, sente-se vagamente viúvo. Há nele qualquer coisa de ex-presidiário ou de défroqué: o cigarro o estigmatizou para sempre. “Mas pelo menos não morrerei de câncer” – conclui, pensando se não seria o caso de pegar o revólver ali na mesinha da cabeceira e dar logo um tiro na cabeça.
Fumar é morrer um pouco — diz um artigo que tenho diante dos olhos: “os fumantes têm uma probabilidade duas vezes maior de morrer na meia-idade do que os que não fumam”.
Sou um homem de meia-idade; e, como deixarei para sempre de fumar dentro de alguns minutos, a minha probabilidade de morrer daqui a pouco ficará reduzida à metade. Resta a outra metade, ou seja, a morte em decorrência de outras causas. Quanto a estas, não creio que haja nada a fazer. Não há outros vícios que eu possa abandonar, a não ser o de viver.
Viver é um belo vício, mas faz tanto mal à saúde quanto fumar. Viver também é morrer um pouco. Faz cair os cabelos e os dentes. Provoca rugas na pele, flacidez nos músculos e artrite nos ossos. Enfraquece a cabeça, combale o organismo e ataca o coração. É o próprio suicídio dos que não têm pressa.
E o pior é que aos fumantes nem ao menos resta o consolo de saber que estão afugentando a morte quando abandonam o fumo, pois afirma aqui o tal artigo: "Somente ao fim de dez anos de abstinência tabágica as possibilidades de falecer em conseqüência do hábito são iguais às das pessoas que não fumam”.
Dez anos? Sei de um que não fuma há nove — portanto durante um ano estará sujeito ainda à falecer em consequência do hábito. E até hoje sonha que está fumando, acorda engasgado com a fumaça.
Um dia me vi sem um só cigarro em casa — era de madrugada e chovia. Ainda assim saí à rua para comprar, não poderia dormir sem fumar. Andei como uma alma penada pelas ruas escuras e molhadas de meu bairro, nem um botequim aberto. Já me dispunha a tomar um táxi e mandar seguir para o quinto dos infernos, onde Belzebu estivesse pitando o seu cigarrinho, aceso no fogo eterno. De súbito percebi a escravidão que aquilo significava. Chovia cada vez mais, relâmpagos cortavam a noite. Nunca mais hei de fumar! — bradei então para as potestades dos céus.
No dia seguinte me agarrei com ferocidade à surpreendente decisão. E parecia fumar a todo momento um cigarro imaginário. Ao segundo dia meu propósito se robusteceu — eu tinha vencido: em breve estaria respirando melhor, sem corizas e pigarros. E ao terceiro dia enlouqueci.
Não sei como não me internaram. Comecei a ter ímpetos homicidas dentro de casa, ai de quem me aparecesse pela frente! seria esmagado implacavelmente pela minha ira contra todos os vícios. Completamente doido, falando sozinho, espadanando os braços, para lá e para cá... Agarrava-me com todas as forças ao meu novo vício: o de não fumar. Só falava nisso, só vivia para isso.
Depois do primeiro mês a coisa se tornou mais fácil, mas eu vivia triste como se tivesse perdido um parente próximo, um amigo querido. As pessoas me olhavam, penalizadas, como a dizer: esse homem esquisito que não sabe onde põe as mãos, positivamente já não é o mesmo.
Já não é mais o mesmo, porque não é mais um homem – eu próprio pensava: sentado no sofá, vendo os outros fumarem, eu me sentia sem braços como um cavalo.
Com o correr do tempo me acostumei. Um ano e dez meses! Até que um dia, para provar que eu deixara mesmo de fumar, aceitei com naturalidade o cigarro que me ofereciam, depois de um jantar.
E assim foi: a partir de então, um cigarrinho aqui, outro ali. Quando dei pela coisa estava fumando mais do que antes. A instâncias dos amigos, de quem me tornara um importuno filante, acabei cedendo e comprei meu primeiro maço, como uma mulher que se entrega por dinheiro pela primeira vez.
Na época, cometi a leviandade de escrever gracinhas sobre o assunto, dizendo que pouco importava voltassem a ser tantos cigarros quanto os de antigamente, desde que na boca de alguém que, por convicção, havia deixado de ser fumante.
E agora? Bem, agora é diferente — desta vez é para valer, não admito brincadeiras: dentro em pouco estarei fumando o último cigarro de minha vida. Decisão assumida de repente, como a própria aceitação da morte: salto no escuro, viagem sem retorno. Assim eu quereria o meu último cigarro. Sei o que me espera. Os que deixaram de fumar me entendem.
Acendo o meu último cigarro, e enfrento serenamente o pelotão de fuzilamento.