Há coisa de dois meses e pouco (ou, para ser preciso, dois meses, 16 dias, 23 horas e 30 minutos, no momento em que escrevo), declarei de público que estava para fumar o último cigarro de minha vida. Desde então muitos fumantes que pensam deixar o cigarro e outros que já deixaram mas só pensam nisso me perguntam se voltei ao vício.
A estes que me acompanharam em tão doloroso transe, tenho a informar que continuo firme, mastigando chicletes adoidado, sem ceder à tentação e plenamente convencido de que o difícil de aguentar são apenas os primeiros 10 anos.
Estou me sentindo como aquele camelinho que cruzava pela primeira vez o deserto, na caravana, ao lado dos camelões velhos e experientes: os chamados navios do deserto, para quem quarenta dias sem beber uma gota d'água era simples rotina. Pois a horas tantas, debaixo daquele sol de ferver a cuca, o camelinho se emparelhou com um dos camelões e desabafou:
— Vocês podem pensar de mim o que quiserem, mas a verdade é que estou sentindo uma sede desgraçada.
É exatamente o que se passa comigo. Deixar de fumar eu deixei, mas estou sentindo uma vontade desgraçada de acender um cigarrinho.
Como dizia um idiota outro dia no barbeiro:
— Deixar de fumar é fácil. É só, depois de ter deixado, não acender o primeiro cigarro.
Venho despertando inveja entre os fumantes, e só agora dou com a razão: o aumento do preço dos cigarros.
Pois me contaram o caso daquele cidadão, munido de poderoso charuto, que pediu fogo a alguém na rua. O outro desculpou-se dizendo que não tinha fósforo nem isqueiro, pois não fumava. Enquanto isso, dava uma olhada no charuto, que lhe pareceu coisa fina e, enxerido, não resistiu à curiosidade:
— Esse charuto deve custar uma nota, ahn?
É isso aí: uma nota. Bem uns 50 cruzeiros... Bota 50 nisso.
— 100?
— Daí pra mais.
— Não dá pra imaginar... — o enxerido suspirou, desalentado, mas logo voltou à carga: – E posso saber quantos charutos desses o amigo fuma por mês?
— Uns quatro, pelo menos.
— Quatro?
— Por dia.
— A 100 cruzeiros... Espera: o amigo disse por dia?
O do charuto assentiu gravemente. O outro o olhava, admirado:
– Desculpe perguntar, mas há quanto tempo o amigo fuma desses charutos?
— Uns 30 anos.
— 30?
— Daí pra mais.
O não-fumante pôs-lhe a mão no ombro com familiaridade:
— O amigo não me leve a mal, mas já pensou que, se não fumasse, hoje podia ser dono daquele edifício ali?
O do charuto olhou o edifício que o outro apontava e perguntou por sua vez:
— O amigo não fuma charuto?
— Nem charuto, nem cigarro, nem nada — tornou o outro, sobranceiro: — Nunca fumei na minha vida.
— E o amigo... é dono daquele edifício?
Ante a perplexidade com que o outro sacudia a cabeça negativamente, o do charuto arrematou, em tom modesto:
— Pois eu sou.
Como não consegue mesmo abandonar o cigarro, meu amigo João Condé prometeu aos santos de sua devoção que só fumaria em Caruaru, sua terra natal. Inventou logo uma viagem a Caruaru, fumou o que bem quis.
Não podendo ir toda hora a Caruaru, decidiu estender a São Paulo as fronteiras geográficas de seu tabagismo. E andou viajando para São Paulo mais vezes do que precisava. A ponto de, numa das viagens, não resistir ao apelo da luzinha do avião “não fumar” subitamente se apagando: por que não restringir a abstinência aos limites da cidade do Rio de Janeiro, onde mora? A partir de então, mal o avião levantava voo em qualquer viagem sua, chamava a aeromoça e pedia com voz ansiosa, cigarro apagado entre os dedos:
— Me avise quando o avião não estiver mais sobre o Rio.
Até que um dia descobriu Niterói. Foi José Lins do Rego quem lhe chamou a atenção:
— Você prometeu não fumar na cidade do Rio e não no Estado do Rio.
O romancista, nas suas funções de fiscal, tinha de cruzar a baía de vez em quando, e arrastava consigo o amigo, para lhe proporcionar o prazer de um cigarro. De vários cigarros. A instâncias do fumante inveterado, José Lins foi a Niterói muito mais vezes do que exigiam as suas atribuições funcionais:
— Afinal você é ou não é fiscal? Cumpra o seu dever.
Passa-se o tempo, João Condé já indo sozinho a Niterói só para fazer boca de pito, vem a miserável fusão: e agora? Onde começava e onde acabava o Rio de Janeiro? Para evitar desentendimento com seus santos, a esta altura já meio ressabiados com devoto tão impenitente, João Condé resolveu dar nova configuração à sua promessa: pois então está bem, confesso que andei abusando, fumei até no meio da ponte Rio—Niterói. Pois de hoje em diante a coisa muda de figura: só fumo aos domingos.
A partir de então, toda noite de sábado, lá está ele, andando de um lado para outro e a cada momento consultando o relógio:
— Falta só um minuto para meia-noite.
A partir da meia-noite dispara a fumar, até a meia-noite seguinte. Quando lhe sugiro que estabeleça um número razoável de cigarros, digamos uns dez, ele protesta:
— Eu sou lá de botar reboque em promessa?
Este outro confessa que está tentando seguir o meu exemplo, mas não consegue:
— Acabo sempre recomeçando quando saio do cemitério, depois de um velório.
Pior que acordar já pensando em cigarro é fumar na cama, antes de dormir, de cujo perigo dão testemunho vários lençóis meus com buraquinho feito pela brasa.
De ambos os hábitos malsãos, certamente, não nos livrará o estalo de gênio daquele inventor italiano de que tive notícia, mas é provável que afaste de nós o perigo de botar fogo no quarto e mesmo — quem sabe? — o fantasma do câncer no pulmão.
Pois diz a notícia que o tal italiano houve por bem inventar o “cigarro já fumado" — que vem a ser, precisamente, a fumaça extraída do fumo. Por um processo lá de sua invenção, a fumaça, depois de filtrada e livre das impurezas, inclusive do alcatrão, é comprimida num pequeno tubo do tamanho de um cigarro comum, que dispõe de uma válvula e uma boquilha. Obviamente, dispensa o fogo, o que de saída afasta o perigo de incêndios e os 1001 inconvenientes da cinza.
Resta saber se o poderio da indústria de isqueiros, cinzeiros, cigarreiras, piteiras e outros apetrechos tabágicos nascidos do nosso vício de fumar admitirá o incremento dessa invenção. Há mais, e pior: o ritual a que o cigarro nos submete, condicionando todo um comportamento social — os gestos já consagrados de levá-lo à boca e acendê-lo como premissa de uma boa conversa, a procura de um cinzeiro para mudar de assunto, os intervalos na chatice dos espetáculos e das cerimônias para se fumar um cigarro, o velho pretexto de sair de casa só para comprar cigarro na esquina — e por aí afora.
O próprio inventor confessa que, tendo fabricado um de seus aparelhos de fumaça comprimida para uso próprio, de vez em quando não resiste e, simplesmente, acende um cigarro comum.
Tendo deixado há anos de fumar, depois de ter sido um dos mais inveterados tabagistas que conheci (quatro maços por dia), Rubem Braga me confessa que para ele o cigarro, hoje em dia, é exatamente como uma mulher por que se foi apaixonado e deixou de ser – olhado com uma olímpica indiferença, como quem diz: como é que um dia eu pude gostar tanto de uma coisa dessas.
Ao que o Alfredo judiciosamente observa:
— Pode ser, mas acontece que essa mulher por quem se foi apaixonado acaba engordando, ao passo que o cigarro continua sempre o fino que satisfaz.
Estou impressionado com o interesse que vêm despertando entre os fumantes as referências que faço de vez em quando à minha heróica decisão.
Heróica porque ainda me sinto como aquele condenado à morte, diante do pelotão de fuzilamento, a quem ofereceram o último cigarro:
— Muito obrigado — recusou ele: — Estou tentando parar.
Por telefone, carta, ou mesmo pessoalmente, as pessoas me procuram para falar no assunto. Alguns, com ar desdenhoso, perguntam como vou me aguentando — e deixam escapar da boca uma voluptuosa baforada de fumaça. Outros põem em dúvida os meus propósitos e me questionam de todas as maneiras, traindo o seu íntimo desejo de imitar-me.
Pois a todos, do alto da minha experiência, eu digo que só há um jeito de parar: jogar fora o cigarro e morrer, se preciso for, mas nunca mais na vida acender outro. Ainda bem que a vontade de fumar não é cumulativa, como a fome ou a sede, que aumentam com o tempo. É como a lembrança de um amor para sempre perdido: traumatizante no primeiro dia, insuportável no segundo, dolorosa no terceiro, pungente ao fim de uma semana, conformada ao fim de um mês, superada a partir de seis meses. Dia chegará em que você vai dizer, como Rubem Braga, não sem alguma nostalgia: não sei como é que eu pude gostar dessa mulher. Então você estará no auge do perigo de uma recaída: vai sair com ela só para provar a si mesmo que ela já não lhe inspira sentimento algum. E na manhã seguinte, ao acordar, vendo-a nua, dormindo a seu lado...
Mas espera, meu Deus, que é isto, eu falava era de cigarros.