Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp.91-92. Publicada, originalmente, no jornal Última Hora, de 05/04/1961.
Comemoro hoje, em intimidade, os meus primeiros 20 anos de crônica. Como não tenho a menor esperança de completar outros 20, sirvo-me de um uísque puro e bebo-o, festivamente, não em homenagem, mas em lembrança de tudo que passei.
—Tua saúde, homem!
Comecei no Recife, em abril de 1941, via pistolão, após receber de volta 11 crônicas que entreguei, pessoalmente, ao secretário do jornal. Fui publicado, afinal, descrevendo uma mulher que vira na rua Nova e que, face a ela, me colocara “com a humildade de um mendigo diante de um prato de comida”. A imagem fez muito sucesso entre quatro ou cinco amigos, na calçada do Fênix, Recife. Mas foi só. À noite, quando fui levar a segunda crônica, o secretário trancou-se comigo em seu gabinete e passou-me esse carão:
— A Norma Shearer (havia-lhe elogiado o “estrabismo lascivo de Norma Shearer”) de quem você falou é esposa de um anunciante nosso, que mandou suspender o anúncio da edição de domingo. Você, hoje, tem que escrever qualquer coisa, explicando que a semelhança com qualquer pessoa é mera coincidência.
Depois:
—Já vi que você quer ir no caminho de Rubem Braga. Mas fique sabendo que, em cidade pequena, isso é impossível.
Segui, dali para frente, tomando imenso cuidado com qualquer coisa que pudesse desgostar o anunciante. Na mesma crônica de estreia, a revisão me atingira pela primeira vez. Corrigiram “mendigo” para “mendingo”. No dia seguinte, sobre carnaval, saiu “sempertina”, em vez de ‘serpentina’. Pensei muito em abandonar o jornalismo. Por dois motivos: o anunciante e a revisão.
Aqui, no Rio, em meus começos, por mais que procurasse evitar, escrevia sempre para uma minoria, que frequentava o Vogue. Moças educadas no Sacré-Couer, que me chamavam, suspirosas, de poeta. Causava-me náuseas os olhares oleosos com que me diziam o elogio. Tudo falso — o olhar, a voz, o flerte ficeleiro que me ofereciam. Na época, o Petit Prince estava muito em moda. Era chique citar-se o diálogo da raposa com o pequeno príncipe. A raposa a dizer que era preciso primeiro cativar. Aquilo me enfadava, de tão repetido. Uma vez me disseram que eu era o Saint-Exupéry do Brasil e passei a fugir de toda aquela gente prodigiosamente tola. Entendiava-me depois, depois de tanto vir, ser o “Exupéry do Sascha’s”.
Faço, hoje, 20 anos de cronista. Andei um bom pedaço do mundo e conheci um sem-número de corações. Tranquei-me em casa, depois. Não gosto de escrever. Se soubesse fazer outra coisa, mesmo que fosse um contrabando, não escreveria coisa alguma. Mas preciso escrever e tenho que continuar. Encontrei, porém, um caminho melhor. Meu leitor não é mais a moça educada no Sacré-Couer. É o portuário Porfírio. É o candango, demitido em Brasília. É a funcionária pública, cujo salário não paga o almoço na cidade. É uma gente que existe. A viver males que existem. Homens e mulheres de verdade, para quem a raposa de Saint-Ex tem uma importância muito limitada. Faz-me bem, ao tomar este uísque comemorativo, saudar o novo público de carne e osso:
— Saúde, leitor!