Fonte: Caderno B, coluna "O homem e a fábula", Jornal do Brasil, de 28/04/1964.

— Você está muito relaxado — disse ela. — Encontrei uma barata morta no banheiro. Será que você ficou tão preguiçoso que não é capaz de jogar no lixo nem mesmo uma barata morta?

— Aquela barata é para amedrontar as outras — explicou ele. — Matei-a ontem à noite e pretendo deixá-la alguns dias no chão, para que as outras vejam que nesta casa mora um matador de baratas.

— O que você é — disse ela — é um preguiçoso de marca.

— Além do mais — continuou o homem — o horror que você tem às baratas não é normal. Esse horror deve corresponder a uma dificuldade interna qualquer. Você devia procurar um psicanalista.

— Já vem você com a sua mania de psicanálise! — Disse ela. — Você devia instalar um consultório.

— Chega, chega! — Disse ele. — Penso que isto não pode continuar por muito mais tempo. Será que agora tudo é motivo para briga? Vamos brigar por causa de uma simples barata morta?

Ela mudou de tom:

— Você tem razão. Vamos mudar de assunto.

Duas horas depois, estavam serenos, ela fumava distraída e ele perguntou:

— Em que é que você está pensando?

— Não vou dizer — respondeu ela — porque você não vai gostar.

— Diga. 

— Não. Não me obrigue a dizer. 

— Vamos. Diga.

— Você quer saber? Pois eu estava pensando na barata. Ela não sai da minha cabeça.

— Isto acontece porque você, que se vangloria de conhecer a fundo o comportamento Zen, não faz o menor esforço para seguir as lições dos mestres. O seu zenbudismo é puramente ornamental, você não assimilou nada. Sempre me pareceu que você lê determinados livros por puro esnobismo.

— Mas, meu bem, como você está desagradável! Qual é a relação que há entre uma barata morta e as lições de Zen?

— A relação é claríssima. Faça o favor de recordar aquele episódio no qual o Mestre vai andando a meditar, com o discípulo alguns passos atrás. A mulher queria atravessar o rio e o Mestre a conduziu em seus braços. Quando o discípulo estranhou que ele interrompesse suas meditações para tomar aquela providência, disse o Mestre: “O estranho não é que eu tenha levado a moça para a outra margem, uma vez que alguém teria que fazê-lo. O estranho é que você até agora está atravessando o rio com a moça nos braços”.

— A história não é bem assim — disse ela. — Você fez algumas modificações, mas isso não tem importância.

— Claro, pois o importante é que você está com a barata atravessada na consciência. Vou varrer o banheiro, o cadáver vai desaparecer e, no entanto, a barata continuará perturbando a sua mente. Ela é apenas o signo de uma inquietação mais profunda, sem nome, sem consistência.

— Você é um chato — disse ela e foi-se embora. 

Contudo, esqueceu os brincos.

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