Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 18/02/1970.

Há duas maneiras de ir. Em lancha particular, como a de César Thedim, atravessamos o canal, ganhamos o mar encapelado ao largo da praia do Farol, ingressamos numa vasta enseada, navegando ao longo de uma falésia apodrecida pelas tempestades, e ganhamos uma enseada menor — o paraíso.

Mas qualquer pessoa pode fretar o barco de um pescador, no Arraial do Cabo. São 15 minutos de viagem. Para chegar ao paraíso há diversas senhas, tais como “vamos às prainhas”; “vamos à praia do Forno”; “queremos ir à praia da Figueira”; “vamos àquela enseada que existe atrás do farol novo, bordejando a montanha sobre cujo cimo se encontravam as ruínas do farol velho”. Para quem vai em lancha própria, o mais simples é tirar uma diagonal imaginária a partir da chaminé da Companhia de Álcalis, para a direita.

A recompensa, convém repetir, é o paraíso. As tartarugas refocilam no mar azul. Vamos adentrando uma angra como não há em outra parte, em cuja água extasiada se amontoam todas as tonalidades do azul e do verde, que transparece ao olho, mostrando o leitoso leito, desde uma profundidade de dez metros. À direita, ao pé de uma agreste montanha, estão as prainhas; em frente, se ergue a montanha mutilada, cortada ao meio pela navalha do acaso, forma essa que aos pescadores sugere um forno descomunal. E à esquerda, também protegidas pelos ásperos montes, nos quais são senhores o cacto e o camaleão, erguem-se do espelho azul, em duas ondas caprichosas e ofuscantes, as dunas íngremes. E no alto da primeira duna, explodindo em folhas, galhos e raízes para todos os lados, soturna e tisnada como um velho pescador, silente e poderosa como uma feiticeira, espera-nos a figueira, um labirinto de conto de fadas. Ali nos perderemos e, vista de longe, quando no seu útero vegetal se escondem aqueles que amamos, situados que estamos ao pé da água mansa, carimbados pela claridade, rentes ao momento que passa, oh, nós experimentamos um ciúme, uma saudade e uma raiva que se dirigem especificamente à infância perdida.

Mergulhemos — e eis que a luz do sol, filtrada pela massa de água turmalina, desata para nós, na silenciosa areia submarina, um calidoscópio inquieto, um cardume de formas luminosas. As gaivotas ferem a água com uma ferocidade lúcida, de punhal; e se erguem sem o prazer da traição, pois aqui é a água que, sem pudor, mostra o que há de piscoso em suas entranhas. Psicose. A saúde de ferro coincide com a imaginação desabrida; Abel era inocente, mas Caim queria construir cidades. Imitando o padre Anchieta, empunho meu bastão e escrevo na areia um poema que a água desmanche.

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