O livro é de Nelson Costa e se chama Páginas cariocas — “trechos de autores brasileiros sobre a cidade do Rio de Janeiro, destinados aos exercícios de linguagem”. Minha edição, de 1929, é a quinta. A obra é imperfeita, por demais encolhida, e vários trechos não me parecem aconselháveis como exercícios de linguagem. Contudo, é um livro bom, divertido e bem-intencionado. Agora que se aproxima a festa do IV centenário da cidade, sugiro a qualquer editor desta praça que retome a ideia do antigo professor, e organize, em um, dois ou mais volumes uma ampla antologia de escritos sobre o Rio, arranjados naturalmente com método e gosto e, se possível, com ilustrações. Palpita-me que seria sucesso. Como só o historiador pode ler tudo sobre o Rio, possamos nós conhecer o essencial e o mais curioso, e nos indiquem os caminhos às leituras mais aturadas sobre cada assunto. Até lá, irei relendo com prazer Páginas cariocas, aprendendo as suas coisas importantes ou frívolas. A variedade dos temas, das épocas e dos estilos é que faz a delícia desses livros, ou desses bondes malucos que percorrem o passado. Vamos tomá-lo rapidamente.
Em crônica velha, Álvaro Moreira, com humor, justeza e aspas profusas, explica por que a cidade do Rio conta tempo às avessas: velhinha tristonha na fase colonial, grave matrona quando aqui uivava a rainha doida, entrou no outono com d. Pedro I, rejuvenesceu escandalosamente com a regência, fez vinte anos com a república, acabando menina-e-moça. Passa-se a página e Olegário Mariano dedica à cidade os epítetos de maravilhosa, do amor e da loucura, das estrelas errantes, do êxtase e da melancolia, de árvores e sinos, berço de ouro de todos os destinos, fonte eterna de todas as saudades; ficou maravilhosa, que, não significando muito, era mais leve, e pegou. Logo a seguir o Conde de Afonso Celso inunda o leitor de adjetivos mais convincentes que a razão, viva o Conde. Acha Varnhagen que o nome de Corcovado foi uma falta de caridade. Rimando com escampo, Mário de Alencar manda o leitor para o campo, e este era na Tijuca. Em Copacabana, João do Rio, uma espécie retórica de public-relations da cidade, discorre sobre o tempo do chá ao ar livre e de “uma criatura loura, envolta no manto de púrpura”. Mas a antologia nos arrasta ao outro lado, à Gamboa, com os seus operários tisnados, às misérias da Saúde, na viva descrição de Coelho Neto, à pobre e suja Cidade Nova, onde o Xixi, o Dudu, o Bastinhos, pianistas, eram, na palavra de Lima Barreto, os heróis-poetas daquela gente. Esta narrativa de Bilac produz calor: o bonde em que ia o poeta enguiça na praia do Russell em um meio-dia de ofuscante verão. Alencar faz história sobre o largo do Paço, também Rocio do Carmo, Terreiro da Polé para o povo, e hoje praça Quinze de Novembro. Crise de apelidos sofreu também a mais carioca das ruas do Rio: aberta em 1570, foi denominada Desvio do Mar, passou a ser rua Aleixo Manuel, Padre Homem da Costa; o povo dizia rua do Amotinado, enquanto o clero esperava que a batizassem do Cabido ou da Sé Nova; essa pluralidade onomástica cessou quando, em 1870, lá foi morar um ouvidor — uma potestade naquele tempo, lembra Manuel de Macedo. Ali perto, Bilac tem de novo a palavra, na rua Direita, hoje Primeiro de Março, uns 500 estudantes, armados de varapaus e raras carabinas, encurralaram valentemente, em 1710, os mil soldados do invasor Du Clerc, enquanto o governador não se decidia a reagir com a sua guarnição. João do Rio decepciona-se por não ter encontrado a Quinta da Boa Vista e os jardins da Beira-Mar animados de senhoras lindas e cavaleiros em ágeis corcéis. Orestes Barbosa mostra que o Barão de Drummond, além de ter visão larga (“haja vista o jogo do bicho, invento que o imortalizou”) era homem de sorte; segundo o povo e o poeta do Chão de estrelas, o Barão comprara fiado das mãos da princesa Januária a Fazenda do Macaco (Andaraí, Aldeia Campista e Vila Isabel) por 600 contos; antes de receber a primeira prestação, a irmã do imperador morreu, perdoando em testamento todos os seus devedores. Lima Campos dá notícia dos passarinhos da cidade, as rolas, os pintassilgos, os tico-ticos, e as andorinhas, que aqui não precisam emigrar. A primeira casa legislativa, mãe da atual gaiola de ouro, foi construída, segundo Vieira Fazenda, a pau-a-pique e coberta com folhas de palmeiras, sendo contra o jogo de dados uma de suas primeiras posturas. Há 150 anos, noticia Escragnolle Doria, o funcionário público jantava no Rio ao encerrar-se o expediente, às duas horas; à uma da tarde, jantava o negociante, e ao meio-dia quase toda gente; ao cair da noite, só jantavam os negociantes ingleses. Refere Hermeto Lima que o Conde de Resende, Vice-Rei de 1790 a 1801, ia de sege a Mataporcos para “assistir ao jogo da bola que ali havia”. Bilac e João do Rio historiam o esporte um século depois: faz o primeiro uma reportagem sobre as corridas de cavalos (os homens usavam alfinetes de gravata com forma de ferradura) e outra sobre a abertura do campeonato de remo de 1900; o segundo, sempre estiloso e exagerado, relata uma partida de futebol (“coisa séria para o carioca”) em 1916, assistida por uma multidão (“paroxismada de emoção”) de seis mil pessoas, e na qual o Flamengo venceu o Galo par quatro a um. Já em seu tempo, Coelho Neto achava que o carnaval de outrora era mais belo e mais animado. O primeiro regulamento de trânsito é de 1848: os tílburis cobravam mil réis por hora e 1.500 quando chovia (Hermeto Lima não esclarece se havia brigas quando estava para chover, ou já tinha chovido, ou chuviscava). Em 1904, quando se inaugurou a avenida Central, a Prefeitura licenciou seis automóveis.
Desço do bonde neste ponto. Só tenho tempo de dizer que se os homens, as casas, as ideias e os costumes passam, é bom conservar dentro de um livro acessível a todos aquilo que o tempo esfumou. Para que não desapareçam totalmente, como a lembrança daqueles tipos populares de que fala Bilac, o Caxuxa, o Vinte e Nove, o Tangerina, o Príncipe Obá, o Castro Urso, o Grito de Sogra, o Natureza e o Pai da Criança.