Publicada, posteriormemte, no livro Homenzinho na ventania, de 1962.
Duas horas da tarde. Ali no início do Morro da Viúva fizeram sinal: duas senhoras, ambas de cabelos brancos, preparavam-se para entrar no lotação, quando o motorista gritou: “Um lugar só”. A velhinha mais velha, já com o pé colocado no carro com imensa dificuldade, conseguiu retirar a perna comprometida, com dificuldade ainda maior, sob os protestos persuasivos da velha mais moça, que dizia:
— Vai, mamãe, vai a senhora, eu vou em outro.
A mãe se desmanchando em timidez, medo e bondade, sorria:
— Não, minha filha, eu não posso te deixar aqui sozinha.
— Vai, mamãe.
— Não, minha filha.
— Pelo amor de Deus, mãe; o homem está esperando.
— Mas... minha filha?!
Os passageiros aguardavam com a tolerante paciência de quem tem ou já teve mãe. O motorista fez força (e o conseguiu, parabéns) para refrear a sua fúria de averno.
— Vai, mãezinha; aqui neste ponto é difícil arranjar dois lugares.
— Não posso te deixar sozinha, minha filha. Nunca!
Diante do impasse, levantou-se, resoluto, um senhor sentado no banco da frente, oferecendo-se para ir em pé, as duas senhoras iriam sentadas. Ah, mas isso não, aparteou o motorista, era contra o regulamento, dava multa. O amável passageiro descompôs o regulamento do tráfego e os demais: eram desumanos. Ao pé da calçada, o torneio sentimental de mãe e filha continuava:
— Vai, vai, mãe.
— Não posso ir sem você, minha filha.
Quem viu a necessidade eventual de perder docemente a paciência foi a filha. Usando de energia adequada ao momento, segurou o braço da velhinha (mas velhinha mesmo, frágil, frágil), empurrou-a com o mínimo de força necessária, proferiu uma ordem imperiosa:
— Vai, mãe.
E a velha mais moça se afastou em passadas compridas, impedindo a contramarcha da velha mais velha, que estava no limite extremo de sua timidez e não teve outro jeito senão agarrar-se ao braço do motorista, entrar penosamente, sorrir pedindo perdão para todos os passageiros. Ajeitou-se no banco, esperou o barulho do motor e comentou para a vizinha (que a olhava compreendendo tudo, as velhas, as mães, o cosmos):
— Coitadinha! Eu fico morrendo de pena de deixar ela aí, só, tão longe!
Longe de onde? Das entranhas que criaram uma menina. Longe. Só.
A viagem para o centro foi recomeçada, sem novidades, todos voltaram para dentro de si mesmos, esquecidos do episódio. A mãe, no entanto, furtiva (certa de que já causara bastante transtorno naquele dia) inspecionava todos os lotações que ultrapassavam o nosso, aflita em sua quietude, buscando lobrigar a filha. Mas foi só quando o lotação entrou na avenida, e parou diante de um sinal, que, enfim, a velha mais moça, a filha, apareceu em um lotação ao nosso lado. As duas se sorriram como depois de uma longa e apreensiva travessia. A velhinha chegou a fazer graça:
— Graças a Deus, minha filha! Você ainda chegou antes de mim.
— Eu não disse, mãe, que não tinha perigo?
A filha desceu na esquina, chegou até perto da janela do nosso lotação, segurou a mão de sua mãe:
— Agora você vai direitinha, viu?
— Você pode ir descansada, minha filha.
O lotação arrancou de novo, gestos de adeus, a harmonia voltou ao rosto da nossa velhinha, que tranquilizou também a sua vizinha de banco:
— Ela vai trabalhar no Ministério; eu vou para casa; moro no Rio Comprido.