É Natal e o aroma de maçãs estrangeiras vem do escritório fechado. Que pode o menino artista, entre os prenúncios pressurosos de uma data, senão precipitar o seu prazer, abrir as portas, espiar pelos caixilhos das vidraças e pasmar-se?

Um artista não tem tempo. À noite, quando se recolhe ao dormitório, entre irmãos e primos já dormidos, o ruído das águas noturnas o concentra, porque a vida não se vê de um lance, apenas se adivinha por dentro das paredes, e se articula e desfaz em tantas alusões indiretas. No princípio, tudo é subterrâneo, e esse caráter secreto aponta-lhe as premissas de seu ofício. Um pássaro morreu no jardim, um trem de ferro parte ou chega, um cavalo do esquadrão se recolhe à estrebaria. O menino abre seus olhos de artista e continua.

Não pressuponhas a sua inocência e nem temas de seu desamparo: tudo nele é uma força que se quebra e reagrupa, sua doçura é alta e varonil como um toureiro, seu fascinante horror é um sentido a mais, só isso.

Ei-lo diante da vitrina com a sua jaqueta de veludo, a bengalinha de futuro explorador de madrugadas, com o seu pequeno sentimento de criatura moderna e tão antiga. Detrás do vidro, há um boneco do tamanho de um homem (ou um homem?) de cara escarlate, pálpebras azuis, imóvel e impecavelmente sinistro em sua casaca. Eis o menino, mito em formação, diante desse novo mito urbano, demorando-se a adivinhá-lo entre o horror e amor de novas formas (ou sentidos) que a vida convocou. Um segredo a mais no mundo? Ou o mundo? É crepúsculo e as portas de aço cerram-se com rancor. Súbito, os olhos do boneco (ou homem) reviram-se nas suas órbitas metálicas e aquela cara escarlate inclina-se, rápida e mecânica, a um palmo da face do menino artista. Seu grito de horror e amor o paralisa, enquanto o boneco (ou homem) ri um riso de adulta solidão. Só então, a caminho do jantar, fazendo passes com a bengala quimérica, aprende que sua vida só pode ser uma sequência de sustos (e vale a pena).

Todo salto mortal pode causar a morte de um pequeno artista. Mas um artista de verdade não cai jamais no picadeiro. Precário é o seu equilíbrio entre avô e avó, indecifráveis são as figuras de seu corpo na barra do parque. No entanto, embora os tambores do circo desejem a sua morte, embora os clarins da matina anunciem o seu fracasso, um artista de verdade não cai jamais no picadeiro.

Eis que ele é dono de um cão à boca da noite e começa a desprezá-lo logo depois de amanhecer; chama-se Lord, Jim ou Bob e seu olhar é tão úmido que o artista pequeno o percebe até as entranhas da morte, e sua experiência já não vale, e perece, prematura. Mas a quem amar se for preciso amar? O que amar se amar for o amor? É bom tocar a resina dos troncos e prová-la, prever no espaço a geometria da bola de borracha, passar os dedos sobre o musgo, desviar a caravana comercial das formigas. Mas ele ainda não sabe — e por isso se afasta — que as resinas correspondem a formas adequadas de sentir, a bola quer narrar um desenho contido, as formigas pastam em searas de rubro entendimento. Impaciente, o menino artista declina de qualquer inteligência das coisas e vai buscar a evasão das águas, total no breve instante do mergulho, invisível e só e nu em sua redoma.

Úmido, sobre a pedra morna do remanso, o sol não o distingue dos pequenos répteis friorentos. Ou sobre o trampolim, voltado à simples profundidade do céu, um gosto de cloro em seus lábios, um galo vesperal em seus ouvidos, pressente encadear-se o seu momento circular e indivisível. Como está longe e tão perto a pausa à beira do lago, quando poderá passear sob as ramagens, pensando que não é a sua vida um ponto imóvel no tempo, mas uma luz que se desloca em cintilações diferentes, recompondo o ontem no amanhã e o amanhã de tudo em um agora intenso, sem dissensão associando os aviões, os alcantilados, e o mendigo que vai costurar a sua roupa no vão de um esgoto.

De arco e tocadeira ou rolando um pneu sobre o passeio, ele retorna à casa, naquele momento da luz aglutinada, quando, empurrando de volta a carrocinha de sorvete, um estrangeiro de pescoço de girafa vai olhando vidrado para cima do horizonte.

As cidades acabam no aclive das montanhas ou na linha do oceano, mas ao escurecer um bote ganha o mar alto contra o vento e na montanha, a meio caminho das casas e da toca dos morcegos, um homem chamado Arquimedes ou Estêvão ou Morandi rodeou o seu mundo de cedros altos e mastins. O menino artista ama somente o que sabe.

Divergentes são os seus caminhos de ida e de volta sobre o muro que se ramifica, reunindo e apartando as famílias: esse limite entre as criaturas é a sua propriedade, seu espaço, de onde pode espiar cada quintal, de cor e alma diferente, para contar o que se passa no mundo.

É perdoar-lhe a natureza de espião, indispensável à causa da poesia e dos homens. E perdoar-lhe também se escuta as portas, destampa frascos de perfume, prova a terra, fuma restos de cigarro, despetala as flores, vasculha gavetas e velhas canastras, desafina o piano, queima as mãos, bebe o próprio sangue, se tem a ideia de saber se é possível viver sem respirar, se sempre reinventa o seu inferno exuberante.

Grimpando os últimos galhos da mangueira, despencando-se dos andaimes de uma casa em construção, escondendo-se na cripta fresca de uma torre, o menino cumpre a sua missão de artista antes de dormir. Antes de atravessar o espelho deformante do sono, onde prossegue o seu trabalho.

paulo-mendes-campos
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