Fonte: A fina flor de Stanislaw Ponte Preta, Companhia das Letras, 2021, pp. 55-57.
Temos um amigo cigarra... Até aí tudo normal, como dizem os anormais. Mas é que esse amigo cigarra, no seu próprio entender, prevaricou. E prevaricou no violento. Imaginem vocês que, bastou que a “outra” (vejam vocês que monstro de cigarra, chama a esposa de “a outra”)... bastou que “a outra” subisse para Petrópolis para ele alugar quarto num hotel muito bonzinho que tem portaria compreensiva.
Vocês estão seguindo o nosso raciocínio? Pois vamos em frente: de posse da chave do novo lar sumiu da residência oficial e foi à vida, se organizando em outras corriolas, muito sobre o animado, esquecido que mulher esposa é mulher bem informada, não somente pelo muito que investiga (com honrosas exceções), como também pelo muito de informativas que são as pessoas amigas, cujas gostam é de ver fogo na giranda do doutor.
Ainda estão nos acompanhando? Muito bem. Sigamos: a mulher soube, talvez antes que ele, do caso com a mariposa do luxo e do prazer — como diria o poeta... Sabem como é, marido é como boi solto, que se lambe todo. Com quarto em hotel condescendente, com a mulher em Petrópolis, choveu moçoila... Uma noite no Hi-Fi, outra no Drink, uma ida à Barra da Tijuca no carro de outro cigarra, para a clássica intoxicação com camarão, e lá se foi ele a simpatizar mais com esta do que com aquela até que... pimba — ficou de cacho.
Como, minha senhora? O que vem a ser “ficar de cacho”? É ficar sob o signo da amigação. A senhora desculpe, mas a forma grosseira de expressão foi para esclarecer melhor.
Um homem de cacho com mulher em Petrópolis não vai em casa nem para trocar de roupa. Dá uma única passada no lar, apanha um bolo de camisas, outro tanto de meias, pega o terno claro para quando não chover e o azul-marinho para quando chover e esquece de mudar a água do canário.
Tudo num táxi, parte feroz para o hotel mais camarada pouquinha coisa. Vanja vai, Vanja vem, esquece até de subir para Petrópolis no fim de semana. Isto é imperdoável mesmo no pior dos cigarras e, no entanto, aconteceu com esse nosso amigo. Resultado: passou o Carnaval, veio a época do colégio das crianças e “a outra” se despencou serra abaixo, sabendo de tudo, inclusive com uma capa da revista Mundo Ilustrado, onde ele aparece de braços abertos para a objetiva, fantasiado de baiana rica.
Agora ele se despediu da mariposa do luxo e do prazer (jurou-nos que era um encanto de moça e não aceitou nem as duas notas de mil que ofereceu para calçar a saudade), pagou o hotel de porteirinho cego e retornou ao lar.
– Você não imagina o vexame. Lá ninguém fala comigo. O canário morreu de sede, ou de fome... sei lá. O cachorro, aquele desgraçado, que eu curei de bronquite, está me esnobando. Quando eu passo ele não levanta nem o focinho. Limita-se a abrir um olho... um olho de reprovação que me dá calafrios. Minha filha está muda.
– E sua mulher? — indagamos.
– Essa me chama de ele.
– Chama de quê?
– De ele. Se o almoço está na mesa, ela diz pra empregada: “Avise a ele”. Se o telefone toca, é a própria empregada que atende e diz pra minha mulher: “É para ele”. Virei “ele” em minha própria casa.
Coitado do nosso amigo. Badalou muito. Agora aguente. Nisto de consequências, estamos com Tia Zulmira, quando disse: “Passarinho que come pedra, sabe o que advém”.