Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 5/01/1973. 

Antes do almoço, antes de jantar, é a abrideira. Toma-se uma, duas, três, à vontade de freguês. Os senhores mais respeitáveis, que não bebem, ainda assim fazem questão da abrideira — mas só um cálice. Isso é para as crianças ficarem sabendo que o dono da casa tem certos privilégios.

Aos domingos, no botequim, é servida em cálices a partir das dez da manhã. Enquanto as mulheres estão na missa, os homens vão de birita e cerveja — gole contra gole.

Quando você vem do trabalho e passa no botequim, a coisa fica mais solene. É preciso ir direto ao balcão.

— Olá, senhor — diz o homem atrás do balcão.

— Olá — diz você. 

— Vai tomar a branquinha? 

Você balança a cabeça.

A garrafa surge, o líquido de uma cor belíssima sobe no cálice.

— Dois dedos? 

— Três.

Três dedos no cálice, sobre o balcão. Deve-se contemplar longamente a água que passarinho não bebe, enquanto pensamentos rudes, viris, pensamentos de homem macho, tornam crispadas as pálpebras. Em seguida, a fisionomia se desata em serena aceitação do destino. Você segura o cálice, você ergue o cálice, você leva o cálice à boca, inclinando a cabeça para trás, e engole os três dedos da perigosa. E volta a abandonar, desta vez bruscamente, o cálice no balcão, e lambe o beiço, e faz uma careta de raiva impotente, e vai até à porta da rua, e dá uma cuspida na calçada, e exclama:

— Arre!

Mas ainda é cedo. A patroa ainda deve estar preparando a boia. Você volta ao balcão e diz, com a mesma expressão de desgosto e cólera:

— Me bota outra. 

— Perfeitamente.

Assim procediam os cachaceiros de minha infância. Os adultos em geral — mas, entre as mulheres, sobretudo as velhas — nunca dispensavam o aperitivo diário, o que não era tido por vício, e sim por remédio. Abria o apetite.

Quanto a mim, nunca fui chegado ao cobertor de pobre. Batida de limão, só não rejeito quando muito bem-feita, o que tenho visto apenas em casas de família, nunca em bares. Da versão paulista, a caipirinha, onde o limão é esmagado e se põe açúcar em excesso, desta tenho medo, pois embriaga com rapidez e leva o indivíduo a extravagâncias. Mas considero isso uma falha de caráter, e sei muito bem que todo o meu povo tem adoração pela dengosa, pela doidinha.

Por isso, recomendo aos cachaceiros do meu país a leitura de um livro que se chama justamente Cachaça, e que acaba de ser editado pelo Instituto do Açúcar e do Álcool. O autor, Mario Souto Maior, dá-nos um banho de cachaçologia, enumerando dezenas de sinônimos e eufemismos que ela vai ganhando por este mundo afora, citando adágios, adivinhações, anedotas, utilidades medicinais e espirituais, tudo enfim que se possa imaginar em matéria de cachaça e Brasil. O tira-gosto, por exemplo, merece um capítulo inteiro, e na parte das anedotas temos a que se segue, primorosa:

— 1 bêbado 60 num bar e 70 beber 100 pagar, vem logo 1 guarda que vai logo dizendo: — 20 prender!

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