2 jul 1960

Um homem diferente

Periódico
Manchete

Publicada, posteriormente, no livro Hora do recreio, de 1967.

Eu tomava um refrigerante; ele tomava um uísque. O bar vazio às cinco horas da tarde. Meu vizinho de mesa era um homem quarentão, meio grisalho, meio calvo, vestido com decência, sem nada de particular, nada, embora sua primeira confidência fosse esta:

— Bebo porque sou um homem diferente.

Fiquei firme, neutro, sorrindo por dentro de sua pretensão: o orgulho de ser diferente, o velho e equivocado orgulho de se acreditar diferente. Parece que adivinhou meu ceticismo.

— Vou provar que sou diferente e muito pior do que os outros.

Aguardei entediado. Perguntou-me abruptamente: 

— O senhor alguma vez deixou de tomar banho? 

— Absolutamente, menti, meio insultado.

— Pois é isso mesmo, voltou com ar vitorioso; eu já deixei de tomar banho várias vezes. Hoje mesmo, não tomei banho: o aquecedor estava enguiçado e fazia frio de manhã. Às vezes é só por preguiça que não tomo banho.

Meio enjoado daquela confissão, ironizei:

— De fato, o senhor é diferente.

— Estou falando de banho como poderia estar falando de outra coisa qualquer. O senhor por acaso já pediu dinheiro emprestado e não pagou? Pois é isso mesmo: eu já. Meus amigos me consideram um homem honesto, no entanto, nunca fui lá muito escrupuloso em matéria de contas. Posso me lembrar neste momento pelo menos de dez dívidas que não paguei. Quer saber de outra? O senhor naturalmente não é capaz de cometer uma injustiça. Eu sou. Já cometi muitas injustiças em minha vida. Nunca ninguém me disse já ter praticado uma deslealdade. Eu já. O senhor conhece algum homem que tenha medo de homem? Pois eu tenho. Já topei algumas brigas, mas fugi das paradas amargas. E não é só de homem que tenho medo: tenho medo também de mar, de avião, de morrer, de perder meu emprego, de minha mulher, tenho medo de tudo, de tudo...

Lembrei-me dum poema de Fernando Pessoa (“meus amigos sempre campeões em tudo”) mas é claro que não lhe disse nada. Ele pediu um prato de pastéis e continuou:

— Eu sou uma droga, não presto para ser jogado fora. O senhor não é capaz de imaginar os pensamentos sórdidos que passam pela minha cabeça todo dia. Uma coisa horrorosa.

Desta vez lembrei-me de Hamlet, mas fiquei de novo quieto. Ele:

— Eu minto muito, minto pra burro, minto o dia inteiro. Minto até pra mim mesmo. E hipocrisias! Quantas hipocrisias diariamente! O senhor nunca foi ridículo, não é? Ninguém nunca foi ridículo. Outra coisa, por exemplo: nunca ninguém me disse ter praticado uma mesquinharia. Mas eu já fui mesquinho muitas vezes. E pão-duro. Tenho ataques graves de pão-durismo. Quer ver uma coisa? Falo dos outros, falo mal até de meus amigos mais íntimos. E só pelas costas! Sou um velhaco, um completo velhaco. Quer me dizer uma coisa? O senhor tem espírito de sacrifício. Eu não tenho nenhum. Sou comodista à beça, e preguiçoso, danado de preguiçoso. Alguém come só por gulodice? Eu como. O senhor tem inveja de alguém? Eu me mordo de inveja de muita, muita gente. Sou um sujeito fraco, fraco. Vaidoso. Frívolo. Mau cumpridor de meus deveres. O senhor já desejou a mulher do próximo? Eu só desejo a mulher do próximo. Sou o fim, meu amigo. O senhor conhece alguém que não conheça absolutamente todos os segredos da sua profissão? Pois eu, dentro da minha profissão, sou um ignorante. Eu leso o fisco, adoro um contrabandozinho, sou interesseiro, parcial, bajulador... Ah, quando eu preciso de alguma coisa, sei agradar muito bem, muito bem! Quem é que já fez alguma maldade feia? Pois eu já fiz muitas. Até com crianças inocentes. Uma vez, um menino sujou meu terno branco; o pai dele deu-lhe uma bolacha na cara: fingi que estava com pena, mas achei ótimo. O senhor já leu um livro chamado El hombre mediocre? Sou eu, medíocre pra chuchu. E sou um chato, ora se sou! O senhor não está aqui preso por minha causa? Que tinha eu que me meter com a sua vida? Ah, meu amigo, o meu mal é ser assim diferente, um sujeito muito ordinário num mundo de gente formidável. Sou um bestalhão de fivela, um grande bestalhão de fivela.

paulo-mendes-campos
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