Fonte: Toda crônica.  Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p. 412. Publicada, originalmente, na revista Careta, 17/09/1921, e no livro Coisas do reino do Janbom, p. 175.

Depois de ter perdido os meus magníficos cavalos “Zadig” e “Elisabeth”, como já há dias aludi nas páginas desta revista, parece que vou ser obrigado a perder também o “Quilombo”, a minha casa apalaçada, que com tanto sacrifício construí aqui, em Todos os Santos, onde escrevo estas linhas.

Mandei-a construir no antigo estilo campesino português, a conselho do meu amigo José Mariano, com largos beirais, pesadas telhas de calha, largas janelas e alguns arrebiques modernos. Tem dous pavimentos, tanto no edifício principal como num secundário, onde está a casa das “fornalhas” e outros aposentos de utilidade. Os dois corpos da casa são ligados por um passadiço do mesmo gosto que ela. Olha o “Quilombo” a serra dos Órgãos e, dos fundos, por cima do casario suburbano, avistam-se as montanhas do Andaraí. É preciso ficar sabido que o meu “Quilombo” se ergue na extremidade de uma pequena eminência sobre a velha Estrada Real de Santa Cruz: embaixo, na ponte, passa, relinchando, zumbindo, chocalhando, o bonde elétrico de Inhaúma, cujo cemitério vejo logo ao amanhecer, quando desperto, para bem me lembrar da minha perecível condição de homem; e à esquerda, a “lombada” cai a pique, devido a um corte para a passagem de um ramal férreo. Aí, fiz escorar as terras com um muro de arrimo, pois a casa tinha de ficar no ponto mais alto do terreno, que é este próximo da chanfradura feita pelos homens no barro pardo.

Nas terras em que a edifiquei, havia ainda velhas mangueiras que conservei e mandei limpar e podar, vindo, em breve, elas a frutificar magnificamente. Comprei fruteiras criadas e transportei-as para o meu terreno que vai morrendo de elevação, muito suavemente, até quase o canto da Rua José Bonifácio; plantei laranjeiras; matei formigueiros, no meu terreno vizinho e nos alheios; e, em menos de cinco anos, tinha uma habitação singela, cercada de árvores celestes, com uma vivente horta, sem ostentação nem fausto.

Quis que ela fosse internamente aprazível, e chamei para decorá-la um artista modesto, o Chico de Paula, como todos o chamam. Ama muito as rosas e crisântemos que junta com felicidade e desembaraço, parecendo que o pincel, na sua mão, toma as feições de um regador de jardineiro.

Consenti que ele fizesse uma decoração ao seu gosto, mas na sala de visitas; na biblioteca, dei-lhe por motivo a tentação de Santo Antão.

Emprestei-lhe o livro de Flaubert para que a fizesse; e, quando dias depois chegou-me, acompanhado de seu filho Sílvio e da imprescindível caixa de tintas e pincéis, Chico de Paula, com o seu enorme nariz apapagaiado e os seus olhos glaucos, disse-me amedrontado:

— Não faço, não, meu caro. É horrível!

— Ora, Chico!

Ele a fez afinal e, agora mesmo, pouso os olhos num trecho da sua frisa.

Pois bem: é uma casa destas que com tanto carinho construí, mobilei e decorei, que estou arriscado a perdê-la.

Os senhores hão de pensar que a prefeitura ou o Governo Federal ma querem desapropriar. Não há tal. Se a desapropriassem, seria talvez, sob o pretexto de utilidade pública, para a moradia de algum figurão civil ou militar. Consolar-me-ia, porque, ao menos, talvez a conservasse. Mas, para que é então que o governo a quer? perguntarão os senhores. Eu me explico. Acabo de receber uma carta da “Comissão do Centenário” pedindo-me o meu “Quilombo” para alojar não sei que grosso personagem da comitiva do rei do Camboja que vem assistir os festejos do primeiro centenário da nossa independência. Ora, vejam só! Minha linda casa, nas mãos desse engrimanço de anamita, que não é homem nem mulher, quer nos trajes, quer nas feições! Que desgraça! Vai ficar perdido o meu doce “Quilombo”!

Ao rematar estas linhas, acode-me, porém, que talvez se trate da comemoração do segundo centenário, porque para os festejos do primeiro, as cousas estão muito cruas e o mar muito rebelde.

Solto um — uf! — de alívio, pois não posso crer que, em 2022, eu esteja vivo. O que olhos não veem... graças a Deus!

lima-barreto