Estou cansado de sequestros e assaltos; cansado da inflação, de debates sobre a inflação, do calor; das fraudes na Previdência Social; da basbaquice dos que nunca viram seio de mulher e acham o topless o fim do mundo ou a suprema delícia do universo; estou cansado do vazamento dos açudes que espalham a fome, a destruição e a morte, quando a função deles era criar riqueza e ajudar a vida; estou cansado.
E estando cansado, peço a todos que me deixem em paz no meu canto, observando o galanteio das aves. É, o galanteio das aves. Operação que me dá prazer e nenhum trabalho, pois na realidade quem observa por mim é o Augusto Ruschi, aquele brasileiro da melhor qualidade, sábio sem impostura, que vive lá no Espírito Santo em parceria com a natureza. Sábio valente, pois não se furta a protestar contra os atentados de toda sorte que o falso desenvolvimento inflige às fontes da vida humana, como ainda agora nesse caso da fábrica de celulose que, pelo despejo de seus efluentes, vai exterminando flora e fauna marítimas. Mas estou cansado também da poluição e deixo a Ruschi a dura tarefa de combatê-la. Só quero ver hoje o idílio das aves, que ele viu com o maior cuidado e interesse científico-amoroso e registrou em um livro precioso, recém-publicado: Aves do Brasil.
Claro que o livro não trata só de namoro entre aves. É um estudo que divulga o conhecimento da avifauna brasileira sob todos os aspectos, inclusive o amor. As ilustrações de Etienne e Yvonne Demonte trazem as aves para dentro de nossa casa. Quase que elas estão piando e voando. E Ruschi, anos e anos a fio, vai se chegando às espécies mais diversas, vai surpreendendo o apelo erótico, o modo particular de cada ave cumprir seu destino genético.
Aqui está o jacamim-de-costas-cinzentas, meio assustado com o desmatamento da Amazônia (presumo). Chega a hora do acasalamento. Ele eriça a plumagem negro-purpúrea, “abre e estende as asas, deixa-as tremular, para em seguida fazer movimentação do pescoço e da cabeça, frente a fêmea, que acompanha em parte essa cadência, ao mesmo tempo em que é emitido algum som e, às vezes é o esturro”, espécie de estrondo wagneriano. Ah, as aves semostradeiras!
Já o macho-araraúna, com sua belíssima coloração azul-cobalto, encontrável quer em Minas, quer no Piauí (ainda?), é de ficar longas horas, dias seguidos, acariciando a namorada com o bico. “Toca-a desde a cabeça até o crisso, e na maior parte do tempo permanecem em posição oposta”. Carícia total: “O bico inicia as incursões na cabeça e passa pelo restante do corpo, permanecendo muito tempo sob asa, quando a fêmea as eleva, deixando que o companheiro faça a raspagem da pele. Esse movimento é realizado com emissão de voz, surda, rouca e baixinha”. Olha aí a arara ensinando requintes de chamego!
Carece falar na corte do beija-flor à sua amada? É um show com jogos de luz mudando a cor da plumagem, para fascinar a mocinha. Quanto ao tucano-de-bico-preto, esse maroto sabe tocar castanhola com o bico avantajado, que lhe alça e deita o corpo junto ao objeto de seus dengues.
Ritual complicado é o do galo-da-serra, que se processa pela manhã e à tarde, em vários dias, com a presença de alguns machos e pelo menos uma fêmea. Peitos estufados, eles cantam, gritam e dançam. Depois o casal faz ninho na pedra de uma gruta. O canto nupcial do corrupião sofre gradações: é baixo e rouco a princípio, depois mais sonoro e melodioso, e acaba suave ou agudo, conforme lhe dá na telha. E vai-se repetindo até que a garota entregue os pontos. Os sanhaços-de-encontro brigam ruidosamente entre si, disputando a fêmea; segue-se o chilreio do vencedor, com muito bater de asas e momices de cabeça e bico. E os tiés-sangue partem para a agressividade, na disputa de uma noivinha.
Há muita luta entre as aves, para a conquista do direito de amar. Lutam galos-de-campina, gaturamos-bandeirinha, tantos outros. Findo o entrevero dançaril e musical, o macho é todo doçura, e até oferece um seixo à eleita para ser colocado à borda do ninho. (Mas isto é gentileza de pinguim, que Ruschi anotou, embora a ave só chegue ao Brasil trazida pela correnteza). No Rio Grande do Sul e nos dois Mato Grosso, a fêmea do maçarico-oceânico toma a iniciativa do galanteio, e para isto o bom-deus-natura a dotou de cores mais vistosas que as do macho.
Eu passaria aqui a manhã inteira mostrando ao leitor como amam as aves do Brasil, e estou certo de que isto lhes aprazeria mais do que a atrasada discussão em torno do aborto, por exemplo — essa realidade social que se pretende manter ignorada ou proibida no papel, quando a vida difícil ou preconceituosa a tornou inevitável e tacitamente aceita, que remédio? Amai, passarinhos, amai, aves de médio e grande porte, amai à vossa maneira, com os recursos e graças de que dispuserdes. Amai e ostentai vossas plumagens deslumbrantes, se as possuirdes, se não as tiverdes, vale a melodia do canto; e se este for estridente ou sem graça, vale ainda o gesto de amor, o ato de amar. E que homens como o bom Ruschi vos protejam do aniquilamento com que a mentirosa civilização vos está ameaçando.