Você, que há muito tempo não vê beija-flores, a não ser pintados no papel, sabia que no Espírito Santo um homem convive com eles de verdade, em relação de perfeita camaradagem?
Sabia que isto significa 30 gerações de beija-flores em comunicação com o mesmo homem durante mais de 40 anos, no mesmo local?
Que para cativar a confiança dos esquivos e belicosos beija-flores e estudar-lhes cientificamente as distintas espécies, esse homem bolou as traças mais finas, e conseguiu o que sonhava?
Que na lenta, obstinada observação de cada dia, chegou à conclusão de que o voo com movimento helicoidal de asas é proeza que só beija-flor consegue realizar, e nenhum pássaro mais no mundo pode imitá-lo?
Que o chamado voo de libração, com a cabecinha imóvel e o corpo girando, esse nem mesmo todos os beija-flores sabem fazê-lo, e só algumas espécies privilegiadas alcançam tal maravilha?
Que um tal de Loddigesia mirabilis, bailarino-joia entre seus pares, ganha de todos os demais beija-flores no controle espetacular de movimentos, pela implantação singular das retrizes, como verificou esse homem, que lhe descobriu os músculos especiais?
Que o problema alimentar foi considerado da maneira mais delicada, abrangendo a análise de cada flor preferida pela ave, desde a coloração das pétalas até o tipo de néctar secretado e a dosagem dos açúcares, inclusive da sacarose, para que nenhum beija-flor, na convivência com o homem, possa botar defeito no passadio?
Que, não contente em manter junto a si a sociedade colorida de toda espécie de beija-flores, o homem cuidou de montar colônias de repovoamento em centenas de localidades brasileiras e até em outros países da América do Sul, para que eles não acabassem onde estavam rareando, e novos estudos pudessem efetuar-se?
Que o homem não se dá por satisfeito com o que já fez, e prossegue na investigação de novos segredos do beija-flor, relacionados com a muda, o canto, o comportamento, e que nada disso é só poesia, pois é também e principalmente do interesse de todos nós, habitantes da América Latina?
Que isto é fácil de provar, pois seus estudos interessam à fisiologia e à bioquímica, ramos da ciência biológica, e se integram no quadro geral da luta pela conservação da natureza, de que o beija-flor é agente dinâmico, em sua função polinizadora?
Que esse homem, chamado Augusto Ruschi, naturalista de prestígio internacional, é um dos mais altos e generosos lutadores pela defesa do que resta no Brasil, em fauna, flora e vida natural, ameaçadas pela exploração irrefletida, pela ganância de uns e pela ignorância de outros, sob a alegação falsa de que o desenvolvimento econômico exige o sacrifício do meio-ambiente, vale dizer, o sacrifício do próprio ser humano à ilusão do desenvolvimento mortal?
Você sabia que um pouco da vida de pesquisa e beleza desse homem, que se omite como pessoa para melhor servir à causa de todos, está num livro que se chama simplesmente Beija-flores e foi editado pelo Museu de Biologia Professor Melo Leitão, livro em que não figura o seu retrato, mas em que luzem e reluzem imagens de mais de 40 espécies estudadas em suas características, habitat, migração, biótipos: estrela vermelha da mata, garganta rubi, chifre de ouro, gravata verde, besourão, balança-rabo do bico preto, rabo de espinho, tesourinha... e outros e outras que você nunca imaginou, porque são mais bonitas do que a imaginação, e existem por aí e fazem parte do mundo em sociedade conosco?
Mas você agora fica sabendo que a palavra-chave desse livro está no apelo de Ruschi, “lembrando a todos a imensa responsabilidade que temos como seres humanos, para com a conservação do patrimônio natural que nos envolve”, a fim de deter “os passos acelerados que nos estão levando à vulgarização paisagística de todo o nosso planeta, com perigos de consequências imprevisíveis”.