21 set 1976

Visão cardíaca do beija-flor

Periódico
Jornal do Brasil

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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O coração do beija-flor já não tem segredos. De Vila Velha, no Espirito Santo, Ronald Mansur passou-me a notícia. No Museu de Biologia Prof. Melo Leitão, de Santa Teresa, os professores Pedro José de Almeida e Augusto Ruschi, com apoio de instituições nacionais de pesquisa, conseguiram convencer beija-flores de várias espécies a tirar eletrocardiograma. Não era nada de assustar, mas tanto para eles, beija-flores, como para nós, seus amigos e defensores na guerra contra a natureza, que lavra no mundo, importa que a ciência recolha seus dados de regulação térmica, frequência cardíaca, frequência respiratória e consumo de oxigênio. Assim poderão ser assistidos de maneira mais segura, e um elemento gracioso de vida, na terra, continuará desempenhando sua parte na tarefa do equilíbrio ecológico.

Familiarizados particularmente com Ruschi, cientista que deu ao estudo das aves dimensão poética sem quebra do perfeito rigor científico, os beija-flores não devem ter relutado em submeter-se à sondagem do minimíssimo órgão. Tenho para mim que Ruschi conversa com beija-flor, na linguagem deste. Então conversou, explicou, não ia doer, papapá: eles toparam.

O problema era de ordem técnica. O bom registro eletrocardiográfico de uma coisica de nada, como o beija-flor, esbarra em dificuldades maiores que as enfrentadas para esse fim, com relação a aves de porte menos... resumido. Como lembram os dois ilustres pesquisadores, há a considerar o potencial reduzido, passível de ser registrado na superfície corporal, a delicadeza do manuseio durante o experimento, e a falta de equipamentos adequados.

Almeida e Ruschi venceram lindamente o desafio, usando aparelho de fabricação italiana, que permitiu a implantação de pequenos eletrodos de platina, de dois a três milímetros de comprimento. Procuraram reproduzir, com a maior aproximação possível, as posições adotadas na eletrocardiografia convencional humana. Um curativo plástico, em spray, produto brasileiro, evitou o deslocamento dos eletrodos, garantindo-lhes a permanência por longo período de tempo (horas). Leve camiseta de pano, bolada pelo professor Ruschi, envolveu os beija-flores. Durante 60 minutos aguardou-se a adaptação dos bichinhos às condições exigidas. Findo esse prazo, começou a captação de dados. Não se utilizou nenhuma droga para diminuir a natural inquietação dos nossos amigos voadores. Os corações de 16 espécies foram “espionados” quer em estado de atividade (sob contenção de movimentos externos, é óbvio), quer em estados de torpor ou hibernação, inclusive na passagem gradativa de uma para outra fase.

Os resultados obtidos foram excelentes, e constam de boletim técnico do Museu Melo Leitão, editado há pouco. Os desenhos mostram com objetividade o avanço alcançado no conhecimento científico desse gênero de vida animal que é uma das joias da natureza americana. Mas o conhecimento científico, em casos como este, assume conotação poética já assinalada nos trabalhos de mestre Ruschi. O pulsar do coração de um beija-flor há de ser sempre motivo para meditação lírica sobre o mundo tal como nos foi dado e como não estamos sabendo conservá-lo. Se se conservam colares e pulseiras preciosas, por que não fazer o mesmo com essa joia viva e de todos?

Homens como Pedro José de Almeida e Augusto Ruschi não se preocupam em conquistar dinheiro, poder ou fama. Consagram suas vidas a trabalhos obscuros, não rentáveis pecuniária, social ou politicamente. Trabalhos que passam despercebidos do público, por eles beneficiado na medida em que tais pesquisas e análises tendem a preservar a vida animal e vegetal, e consequentemente a vida humana. Ruschi é o mesmo homem que luta vigorosamente contra a destruição dos recursos naturais do Espírito Santo e do país. Não se cansa de alertar governo e populações do interior quanto a uma atividade predatória e a um reflorestamento errôneo que, conjugados, atingem os limites do absurdo. Em 1973, ele já denunciava o desaparecimento dos últimos remanescentes indígenas naquele Estado, tangidos, de começo, pela devastação florestal destinada a produzir carvão, depois pela chegada de posseiros. (Tangidos e eliminados) Ruschi não é político nem agitador social. Quer apenas o pacto homem-natureza selado em favor da vida.

E como o assunto foi beija-flor, cabe o registro: chega do Equador uma simpática Antología del Colibri, livro em que o escritor J. Heriberto Rojas C. reúne versos de poetas de 20 e tantos países das Américas, em redor do tema. Os brasileiros que aí comparecem, traduzidos para o castelhano, são Manuel Inácio da Silva Alvarenga e Alberto de Oliveira. Vamos, poetas, enriqueçam uma futura edição da obra, celebrando o beija-flor, que Almeida e Ruschi estudam com amorosa sabedoria.

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