Aos muitos, prefiro os poucos, e aos grandalhões os pequenos. A pacarana mede só 70 centímetros? Estou com a pacarana.

E estou mais ainda porque na superfície da Terra, atualmente, não existem mais de trinta pacaranas: três em Sapucaia do Sul, no Rio Grande do Sul, e uma em Goiânia, a caminho de lá. Ainda bem que no Brasil alguns naturalistas e ecólogos se lembraram de protegê-las, recolhendo-as a um parque zoológico, mediante compromisso tácito: nem elas irão mais devastar a roça dos lavradores nem nós nos deliciaremos mais comendo a carne delas.

Isto porque, se a espécie está praticamente em fase final de extinção, a culpa é dos caçadores, que apreciam um bom lombo de pacarana, sucedâneo do lombo de paca. São tão parecidos esses animais! Parecidos para desgraça da pacarana, que fez o possível para se diferençar da outra, mas errou no cálculo: ganhando cauda mais comprida, ficou mais visível. Também adotou listras maiores e mais destacadas: azar. Ou quem sabe o projeto era exatamente o contrário: tornar-se superior à paca, mais importante, mais digna de atenção que esta?

De qualquer modo, é de entristecer a verificação de que uma espécie animal qualquer ficou reduzida a trinta exemplares no mundo inteiro, e temos de recomeçar, praticamente a zero, a tarefa de seu ressurgimento. Se meditamos que a pacarana é somente um bicho entre talvez dezenas de milhares que se vão extinguindo sem perspectiva de recuperação, teremos de convir que estamos fazendo um bom serviço para destruir a Terra.

Pouco importa que a pacarana seja um roedor. Nós, seres humanos, somos infinitamente mais roedores do que ela, pois roemos de variadíssimas maneiras e não só com os dentes. Roemos com as mãos, roemos com o corpo inteiro, roemos com a mente. Roemo-nos até mesmo uns aos outros, quando nos entediamos de roer bichos, plantas e minerais, e a guerra constante está aí para demonstrá-lo.

A pacarana, ser de “hábitos crepusculares”, como poeticamente a chama os entendidos, começa a roer por volta das 15 horas. A essa altura do dia, já estamos adiantados na roedura: roemos uma licitação, uma candidatura, uma fidelidade, uma ideia, um município. Os mais dotados de presas roeram um estado inteiro, passando por cima da vontade e esperança de seus moradores. Roer todo um país é trabalho que exige tempo mais alongado, mas o bom roedor chega lá.

Somos roídos pelo dente incansável do fisco, e se nós achamos suficientemente roídos de bolso, vem o Finsocial e prova que restam ainda uns fiapos de algibeira a serem roídos pelo repasse. Falar em escândalo ou em roeção da mandioca é até brincadeira. Que significa um mandiocal em face da área imensa em que são roídos, moídos e deglutidos nossos direitos, projetos e sonhos? Peguem de um aposentado, depois do pacote da Previdência Social roído e corroído, e não foi pela pacarana.

Simpatizei com a pacarana. Esquiva ela é: tem razões óbvias para se manter o mais longe possível do dente humano. Não obstante, deixou-se fotografar em pose graciosa, no Jardim Zoológico de São Paulo, como se pode ver nesse livro cada vez mais fascinante, à medida que os animais vão sumindo: Mamíferos, da professora Flávia da Silveira Lobo. Firmada nas patas traseiras, sustenta nas dianteiras a sua comidinha, com a naturalidade e graça de uma cutia. São orgulhosos, esses bichos horizontais que, na hora de se alimentarem, buscam equiparar-se ao homem, deixando de manter o alimento no chão. Mostram que as boas maneiras não são privilégio nosso. Dispensam, é fato, o requinte de talheres, o que aliás costuma acontecer também entre bípedes civilizados. Em Sapucaia do Sul, posando para o fotógrafo Luiz Achutti, a pacarana ainda é mais distinta, deixou de comer para mostrar-se ao jeito de ministro ou deputado que pretende causar boa impressão. Os olhinhos atentos demonstram cautela, os vastos bigodes são decorativos, a pacarana tanto pode querer agradar-nos como precaver-se contra nós. Ambiguidade comum entre os bípedes sapiens.

Este animal depende de nosso bom coração tanto quanto de nossa ciência. Está em nossas mãos dar oportunidades de vida e reprodução a esses humildes companheiros de vida planetária ou deixar que eles desapareçam do mapa da fauna universal em consequência de nossa gula, que os foi dizimando um por um. Sei que a existência ou inexistência de pacaranas é incapaz de abalar o movimento da Bolsa de Nova York. E também que há crianças, milhares e milhões de crianças por aí além, neste mundo de carências, injustiças e proibições, necessitando de proteção. Não vejo por que, para nos interessarmos por essas crianças, deixar de lado a sorte dos animais que nos rodeiam. A corrente de vida abarca, em sua infinita complexidade, todas as formas de instinto e consciência, e nós não somos rigorosamente donos da Terra; somos seus usuários bem pouco zelosos. Precisamos servir-nos dela com certo cuidado.

carlos-drummond-de-andrade
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