Pássaro feliz é (devia ser) o matintapereira. Pois não ganhou canção de Valdemar Henrique, na voz de Mara? Mara, irmã do compositor, saudade no ouvido da gente, mas podia também ser Nara Leão. Como se não bastasse, é gratificado agora com outra canção, e de quem? Do muito ilustre e raro maestro Antônio Carlos Jobim, letra e música, esta em parceria com Paulinho Pinheiro, já divulgada pelo José Carlos Oliveira. É a glória.
O mal-agradecido nem se dá conta disto, sempre naquela do assobio estridente, monótono, embruxado, no meio da noite brasileira. E se a gente vai ver, seguindo o rastro sonoro, cadê passarinho? O diabo sumiu. Diabo? Não é à toa que lhe chamam também saci. Tom pegou-lhe bem o jeito:
Quero ver, olerê olará,
você me pegar.
Com a diferença de que saci é alegre, suas peraltices revelam o fundo lúdico do negrinho, que nunca chegam às tenebrosas maquinações: ele apaga fogo na cozinha, espalha bolada, assusta gente nos caminhos. E ri. Até a perna-só, de que se serve, é gozada; o cachimbo, idem. Já o saci-coador é triste, agourento, não se permite o bom humor negro. Pia soturno e some. A sabedoria do povo aconselha que se diga assim para ele, no entrevoo do sumiço:
— Escuta aqui, amizade, passa lá em casa amanhã para apanhar tabaco, tá?
Dia seguinte, já sabe: quem bater primeiro à porta de casa é o pobre homem ou mulher que à noite se converte em passarinho, e de manhã volta à condição humana, em busca de fumo para a cachimbada. Nunca mais ninguém quer saber dele ou dela. Pudera: virou matintapereira.
Dizem, não sei se é mentira, mas na Amazônia, matinta quando pia, você deve cobrir as mãos com pano preto, de outra cor não serve: do contrário, as unhas emitem uma espécie de foguinho que espanta a visagem anunciada pelo pio. Cobrindo-as, você vê a coisa estranha, que no Maranhão é a velha Caapora, mas isso depende de ter coragem para ver coisas estranhas. O melhor é não ver nada, não ir atrás do matinta. Agora então, com a abertura da Transamazônica, sabe-se lá em que toco de pau ele se meteu?
É tão safado que se disfarça sob os codinomes mais diversos e para cada ouvido oferece uma onomatopeia, em cada mato do Brasil. Carlinhos Oliveira dá-lhe sete nomes: além de matintapereira e da variante matite, informa que ele responde (ou antes, não responde) por fem-fem, sem-fim, peixe-frito, tempo-quente, saci. Valendo-me de Flávia da Silveira Lobo, doutora em bichos nacionais, posso acrescentar os seguintes: crispim, seco-fico, peito-ferido, peitica, piririguá, sede-sede, roceiro-planta. Antenor Nascentes grafa matim-taperê, segundo a lição de Basílio de Magalhães: elo na corrente de transformações populares, que vai de saci-pererê a matintapereira, nome quase de gente, e gente que se saúda na rua: Oi, Matinta. Falta só chamá-lo de Matinta Pereira da Silva, como lembrou Barbosa Rodrigues na Poranduba. De qualquer maneira, dispõe de tantas identidades, que, no dia em que os bichos pagarem imposto de renda, é bem capaz de escapar do CPF — a menos que lhe preguem não uma, porém, 40 etiquetas.
A canção de Tom devia enfunar de orgulho o papo de matinta. Não ouvi a música, mas se é de Tom é bom, garante Drummond. A letra, um esvoaçar de nomes e formas em torno de João (Guimarães Rosa), que se não era bruxo não sei o que fosse, talvez a própria bruxaria em túnica de linguagem. Há no poema um jogo de esconde-esconde que vai mostrando o sem-fim e o sem parar das coisas, das pessoas, dos pássaros. Tudo voa nas asas de matinta, que não é mais ave sinistra, é o gira-gira do mundo, a ave que ninguém pega, o sonho que ninguém acaba de sonhar. Puxa, matinta, mas você, hem? nem reparou que o nosso Tom, olerê olará, voa mais alto e mais longe, e ninguém o segura mesmo.