18 mar 1971

Da utilidade dos animais

Periódico
Jornal do Brasil

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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Terceiro dia de aula. A professora é um amor. Na sala, estampas coloridas mostram animais de todos os feitios. É preciso querer bem a eles, diz a professora, com um sorriso que envolve toda a fauna, protegendo-a. Eles têm direito à vida, como nós, e além disso são muito úteis. Quem não sabe que o cachorro é o maior amigo da gente? Cachorro faz muita falta. Mas não é só ele não. A galinha, o peixe, a vaca.... Todos ajudam.

— E aquele cabeludo ali, professora, também ajuda?

— Aquele? É o iaque, um boi da Ásia Central. Aquele serve de montaria e de burro de carga. Do pelo se fazem perucas bacaninhas. E a carne, dizem que é gostosa.

— Mas se serve de montaria, como é que a gente vai comer ele?

— Bem, primeiro serve para uma coisa, depois para outra. Vamos adiante. Este é o texugo. Se vocês quiserem pintar a parede do quarto, escolham pincel de texugo. Parece que é ótimo.

— Ele faz pincel, professora?

Quem, o texugo? Não, ele só fornece o pelo. Para pincel de barba também, que o Arturzinho vai usar quando crescer.

Arturzinho objetou que pretende usar barbeador elétrico, e além do mais, não gostaria de pelar o texugo, uma vez que devemos gostar dele, mas a professora já explicava a utilidade do canguru:

— Bolsas, malas, maletas, tudo isso o couro do canguru dá pra gente. Não falando na carne. O canguru é utilíssimo. 

— Vivo, fessora?

— A vicunha, que vocês estão vendo aí, produz... produz é maneira de dizer, ela fornece, ou por outra, com o pelo dela nós preparamos ponchos, mantas, cobertores, etc.

— E depois a gente come a vicunha, né, fessora?

— Daniel, não é preciso comer todos os animais. Basta retirar a lã da vicunha, que torna a crescer....

— E a gente torna a cortar? Ela não tem sossego, tadinha.

— Vejam agora como a zebra é camarada. Trabalha no circo, e seu couro listrado serve para forro de cadeira, de almofada e para tapete. Também se aproveita a carne, sabem?

— A carne também é listrada? — pergunta que desencadeia riso geral. 

— Não riam da Betty, ela é uma garota que quer saber direito as coisas. Querida, eu nunca vi carne de zebra no açougue, mas posso garantir que não é listrada. Se fosse, não deixaria de ser comestível por causa disto. Ah, o pinguim? Este vocês já conhecem da praia do Leblon, onde costuma aparecer, trazido pela correnteza. Pensam que só serve para brincar? Estão enganados. Vocês devem respeitar o bichinho. O excremento — não sabem o que é? O cocô do pinguim é um adubo maravilhoso: guano, rico em nitrato. O óleo feito com a gordura do pinguim...

— Mas a senhora disse que a gente deve respeitar.

— Claro. Mas o óleo é bom.

— Do javali, professora, duvido que a gente lucre alguma coisa.

— Pois lucra. O pelo dá escovas de ótima qualidade.

— E o castor?

— Quando voltar a moda do chapéu para os homens, o castor vai prestar muito serviço. Aliás, já presta, com a pele usada para agasalhos. É o que se pode chamar um bom exemplo...

— Eu, hem?

— Dos chifres do rinoceronte, Belá, você pode encomendar um vaso raro para o living de sua casa. Do couro da girafa, Luís Gabriel pode tirar um escudo de verdade, deixando os pelos da cauda para Teresa fazer um bracelete genial. A tartaruga marinha, meu Deus, é de uma utilidade que vocês não calculam. Comem-se os ovos e toma-se a sopa: uma delícia. O casco serve para fabricar pentes, cigarreiras, tanta coisa... O biguá é engraçado.

— Engraçado, como?

— Apanha peixe pra gente. 

— Apanha e entrega, professora? 

— Não é bem assim. Você bota um anel no pescoço dele, e o biguá pega o peixe mas não pode engolir. Então você tira o peixe da goela do biguá.

— Bobo que ele é.

Não. É útil. Ai de nós se não fossem os animais que nos ajudam de todas as maneiras. Por isso que eu digo: devemos amar os animais, e não maltratá-los de jeito nenhum. Entendeu, Ricardo?

— Entendi. A gente deve amar, respeitar, pelar e comer os animais, e aproveitar bem o pelo, o couro e os ossos.

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