Periódico
Correio da Manhã

Publicada, posteriormente, em A bolsa & a vida, Editora do Autor, 1962, pp. 126-129.

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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Imagens cariocas

O bloco passava lá fora, cantando "Mamãe, eu levei bomba". Minha amiga foi atender ao telefone, e quando voltou ao quarto viu que lhe faltava o relógio de pulso, deixado sobre a mesinha de cabeceira.

Abriu a gaveta e examinou a caixa de joias. É certo que não tinha joias de preço, mas de estimação: o colar de pérolas cultivadas, o anel, os broches, essas coisicas que você sabe. Cada peça lhe viera de uma pessoa querida, e era como se os ofertantes estivessem ali, disfarçados e condensados pelo ourives. Minha amiga ficou muito aborrecida. Não que partilhasse do horror capitalista a ladrões. Não tendo capital, achava exagerado esse sentimento. Nas vezes em que discutira o problema, opinara quase favoravelmente aos gatunos. Coitados, não tiveram boa formação familial; a miséria é grande e espalhada, o corpo social se caracteriza pelo egoísmo. Erraram, apenas. E depois, tanto ladrão gordo por aí, recebido em sociedade, incólume, benemérito!

Por isso mesmo, sentiu-se chocada com o que acontecera. Por que lhe faziam uma coisa dessas? Pedissem qualquer coisa razoável, e ela daria. Se não tinham coragem de pedir, se eram pobres envergonhados, que diabo, levassem objetos caseiros, sem história. É verdade que um ladrão não pode saber se um objeto está carregado de afetividade, e que dinheiro nenhum o compra.

Foi ao andar de cima, conferenciar com o vizinho. Ele nada percebera, mas armou-se logo de pistola e resolveu caçar o ladrão, que pelo visto descera do morro próximo. Sempre desconfiamos do morro, como se esse acidente geográfico retivesse propriedades malignas, extensíveis aos indivíduos. Mas enfrentar o morro, àquela hora da noite, seria temeridade. Já ao transpor a porta da rua, o vizinho decidiu ficar por ali mesmo, pistola em punho, vistoriando os suspeitos que passassem, e não passaram.

Na noite seguinte, o que passou foi a patrulha de Cosme e Damião, que inteirada do fato pensou logo no Curió.

— O Curió estava hoje de tarde querendo vender uns troços de ouro, umas correntinhas.

— Pois então me tragam o Curió, que eu quero conversar com ele. Mas por favor, não o maltratem, hein? pediu minha amiga. 

Curió apareceu pela manhã, todo encalistrado, com os policiais. Pequeno, modesto, simpático. O vizinho correu para apanhar a arma. “Não faça isso, ordenou-lhe a dona da casa. Vamos conversar sentados no chão, que é melhor”. Cosme e Damião preferiram ficar de pé, Curió não se fez de rogado, e o vizinho adotou o figurino. 

— Curió, foi v. quem levou minhas joias de estimação? 

Curió, de cabeça baixa, admitiu o fato. Passara por ali, à hora em que o bloco descia, viu luz acesa, janela baixa e tal, ficou tentado. Conhecia de vista minha amiga e até simpatizava com ela. Mas pra que deixava tudo aberto, exposto, convidando a gente? 

Lealmente, ela aceitou a censura, reconhecendo que não cuidara. 

— V. fuma, Curió? 

— Aceito, madame. 

Cigarro ajuda a resolver. Curió, cheio de boa vontade, não podia restituir tudo. Parte dos objetos fora vendida, os brincos ele dera a uma senhorita. O colar, o relógio e dois broches, sim, devolveria se madame não lhe criasse galho.

— Estão aí com v.? 

— Não, madame, mas pode fiar do meu compromisso. 

O vizinho ia exclamar: “Essa não!”, porém minha amiga pediu-lhe que se abstivesse de comentários. Continuaram negociando, amigavelmente. Aquela fora a primeira vez, Curió vive de biscates, vida apertada, madame compreende. No outro dia voltou com as joias, menos as vendidas, e prometeu tomar os brincos à namorada. Minha amiga achou que não valia a pena magoar a moça, e louvou o desprendimento de Curió. E agora sua casa tem, numa só pessoa, o encerador, o bombeiro e o cão de guarda procurados há muito. O vizinho é que, indignado e dizendo-se sem garantias, pensa em mudar-se. 

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