Imagem no baú

Antigamente as garotas chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas. Não contavam tempo: completavam primaveras, em geral 18. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé de alferes, arrastando a asa, e se eram correspondidos mandavam pedir-lhes a mão, mas ficavam longos meses debaixo do balaio. Se levaram tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. Os populares, quando corriam, era para tirar o pai da forca, e não caíam de cavalo magro. Alguns jogavam verde para colher maduro, sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia que, nesse entrementes, embarcassem em canoa furada. Encontravam um bilontra que lhes passava a manta e azulava. Os mais idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar a fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens iam ao animatógrafo e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de alteia. Ou sonhavam em andar de aeroplano. Estes, de pouco piso, se metiam em camisa de onze varas e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n’água.

Havia os que tomaram chá em criança e que, ao visitarem uma família de toda consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador da encomenda garantia-lhes: “Farei presente”. Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”; ao que o cumprimentado respondia: “Para sempre seja louvado”. Os eruditos, se alguém espirrava, — sinal de defluxo — eram impelidos a exortar: Dominus tecum. Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso punham eram a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa delicada ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando por exemplo insinuavam que tinha um filho ardiloso. É certo que às vezes os meninos eram encapetados e chegavam a pintar escondido atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas teteias.

Certos cidadãos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros, pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim-por-tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde Judas perdeu as botas. Raros amarravam cachorro com linguiça. E outros viam cantar o galo, sem saber aonde; acabavam metendo a viola no saco. As famílias faziam sortimento na venda e tinham conta no carniceiro, mas compravam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo. Dava uma prosa e deixava de presente ao dono da casa um canivete roscofe. Donzelas punham carmim, e por trás da veneziana o viam apear do macho faceiro. Uns eram grandíssimos tratantes: só voltariam no dia de São-Nunca, de tarde.

Acontecia o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava um próprio chamar o doutor e, depois, à botica aviar a receita de pílulas fedorentas. Doença nefasta era a tísica, e feia era o gálico. Os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas, asma os gatos, homens portavam ceroulas, botinas e capa de goma, a casimira era superior e X.P.T.O. London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam.

Mas tudo isso era antigamente.

carlos-drummond-de-andrade
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