Periódico
Correio da Manhã

Publicada em O gato solteiro e outros bichos, Record, 2022, pp. 265-268. 

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

www.carlosdrummond.com.br 

www.leiadrummond.com.br

 

Tenho uma amiga fabulosa, que às vezes perco de vista. Procuro em vão seu endereço. Eis que a encontro na rua, e me informa:

— Casa? Estou com três, e não moro em nenhuma. Estão todas ocupadas pelos cachorros que fui apanhando por aí ou que largaram em frente ao portão. Até os empregados que tratam deles levam para lá os seus animais. Tenho vontade de ocupar uma das casas, para voltar a ser gente. Mas para isso preciso comprar enxoval de gente.

Não é mais gente, é São Francisco fantasiado de mulher, ou é cachorro também, por empatia? Certo é que às vezes se cansa, quer deixar de amar os animais doentes ou abandonados. Mas só por um minuto. Logo se arrepende, e:

— Dizem que eu sou boa. Não sou não. Apenas gosto mais de cachorro que de brilhante. Será possível sentir mais prazer em botar um brilhante no dedo do que ver um cachorrinho com sede — lept lept — bebendo água?

E não dá só de beber aos cachorros, dá-lhes carne, injeção, pomada, vitamina C (gastou uma herança nessa brincadeira). Tudo isso é ternura também. Suas três casas são simplesmente canis. Foi processada por latidos que não deixavam os vizinhos dormir. Então, deixou de morar, e saiu por aí alojando os cães em vivendas só para eles. Mas sua piedade/amor não é só para cão. É para burro velho, pato sem asa, qualquer bicho sofrente. Conta-me, radiante, o caso do gato de Campinho:

O gato, ao fugir do cachorro, subiu ao cocuruto da palmeira, e lá se deixou ficar. Passaram-se dias. Sua dona, cá em baixo, falava-lhe com doçura, sem convencê-lo a descer. Chegaram vizinhos, trazendo varas emendadas para içar alimento, que o gato, desconfiado, repelia. Subir para pegar o bichinho ninguém ousava. Era uma dessas esguias, orgulhosas palmeiras, a que apenas sobem o gato e o bombeiro.

Em tais circunstâncias, o positivo é apelar para minha amiga, que por sua vez apela para o Corpo de Bombeiros, com a autoridade que lhe dá o fazer tudo pelos animais sem nada querer para si. Mas a corporação anda cansada de salvar bichos em abismos, montanhas, beirais de telhado. É demagogia, sentenciou alguém de alto escalão. Além do mais, no lugar onde o diabo do gato se meteu...

— Vocês não vão desmentir a tradição de que para bombeiro nada é impossível! protestou minha amiga.

— A gente mal acabou de salvar o gato, ele grimpa de novo. Esse bicho é de morte, dona. 

Etc. A verdade é que salvar bichos, confortar crianças e adultos desesperados com a situação crítica de animais de estimação, sempre foi tarefa que os bombeiros adoraram. O que não os impede de apagar incêndio na hora devida; é sobremesa de todo dia. Os bombeiros do Posto de Campinho estavam desolados, mas, sem ordem superior, nada feito.

De grau em grau, o próprio comandante foi procurado por toda parte. Passava de meia-noite, ele regressava de um congresso internacional de bombeiros e ia dormir, quando minha amiga o localizou e obteve ordem para salvar o gato. Mas já era tarde, ponderou o comandante; tudo se faria no dia seguinte.

— Tarde não, comandante. Tenente Benevenuto disse que se o senhor autorizasse.... 

— Ah, ele disse isso? Então diga ao tenente Benevenuto que ele mesmo é quem vai tirar o gato. Já.

Tenente Benevenuto estava no primeiro sono. Acordado, vestiu-se, convocou à turma de salvamento e foi salvar o gato. Sem fazer barulho com o carro, para não alarmar uma parte do Rio de Janeiro. Salvaram, dentro da tradição. Eram quatro horas da matina. E como estavam com a mão na massa, dali seguiram para tirar um cavalo caído na vala, em Ricardo de Albuquerque, e apagar um foguinho em Rocha Miranda. Minha amiga (ela não contou, mas adivinho) deve ter seguido no carro com eles, feliz da vida. Assim é Lya Cavalcanti — não podia ser outra, é claro.

carlos-drummond-de-andrade
x
- +