Imagens na confusão

Abri a janela. Depois de procelosa tempestade, noturna sombra e sibilante vento, como na epopeia, a manhã era diáfana e azul-cantante; um tico-tico pousara no fio e namorava a companheira; duas borboletas, dançando entre ramarias, praticavam a mesma arte, e o soldador de caçarolas, de serviço junto ao meio-fio, dizia piadas para as empregadinhas que sobraçavam garrafas de leite. E era tudo bom e inaugural, enquanto a turma de garis, cumprindo ordens de Alvim, o prefeito, dava duro, fazendo a toilette da rua.

— Muito serviço, hein? — falei para o chefe da turma.

— Um bocado muito, sim senhor. Mas não há de ser nada. Com a mudança do governo vai ser mais fácil conservar a cidade limpa...

O homem falava com tanta candura que não me animei a perguntar-lhe se achava que o governo é que suja a cidade. Tomei nota de seu vaticínio e fui para o centro. Caixotes saíam do Senado. Nestes últimos dias não se tem feito outra coisa no Rio senão encaixotar coisas e despachá-las para Brasília. Que conterão esses volumes? Funcionários encaixotados à força, porque suavemente não se deixariam levar para a nova capital? Aproximando-me de um dos caixotes, julguei mesmo ouvir um flébil gemido lá dentro. Ia dizer: “Abra!” para o carregador, mas este me explicou:

— São os papéis chorando por terem de sair do Rio. Se até eles ficam tristes, que não fará quem tem olhos?

E então cheguei à conclusão de que para Brasília não vai ninguém de dois pés. O que vai é papel. O material humano ficará mesmo em nossas praias, piscinas, morros, avenidas, cafés e escritórios, cumprindo o destino carioca normal, enquanto o material de expediente, coagido, segue para a capital teórica do Brasil.

Perdão, dr. Juscelino, esse vai — garante-me o dr. Penido, parando o seu Dauphine para assuntar a mudança.

Para as festas de inauguração?

— Para ser fazendeiro também, então não sabia?

— Ahn!... exclamo desanimado. Então dr. Juscelino vai é me fazer concorrência. Será um novo “fazendeiro do ar”, título outorgado a este humilde cronista e versejador, e que podia ser usado sem risco, porque essa espécie de fazenda, mesmo sem reforma agrária, é a única que não paga imposto.

Outra presença dinâmica no Rio, agora, é a palavra “simbólico”. Usa-se muito “simbólico”. Os Ministérios preparam contingentes simbólicos para a festa de Brasília, haverá um espetáculo teatral simbólico e a própria inauguração será simbólica, com luz, telefone, esgoto, calçamento, transporte, etc., tudo rigorosamente simbólico. A Comissão de Festejos, que talvez se chame na intimidade Comissão do Símbolo, exigiu casaca aos parlamentares que simbolicamente assistirão ao nascimento da cidade simbólica do futuro. Casaca é simbolismo puro, de um status que só sobrevive entre nós em estado gasoso de símbolo. Eu proporia bermudas para o ato inauguratório, mas parece que este é um símbolo ainda não oficializado.

Em meio a essa “forêt de symboles”, veio-me o desejo de entoar o Hino Nacional, símbolo músico-verbal de nossa grandeza, mas aí, apareceu o professor Adriano Kury e me deixou numa dúvida terrível, ao chamar-me a atenção para o verso: “O teu futuro espelha essa grandeza”. É o futuro do Brasil que espelha a sua grandeza, ou a grandeza do Brasil que espelha o seu futuro? Kury entende que há uma inversão na sentença, mas eu não entendo mais nada, dr. Juscelino mudou tanto o Brasil que o futuro é presente, o presente é uma coisa que não sabemos qual seja, na confusão desejo a todos um bom domingo.

carlos-drummond-de-andrade
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