Periódico
Jornal do Brasil

Publicada em O gato solteiro e outros bichos, Record, 2022, pp.143-146.

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

www.carlosdrummond.com.br 

www.leiadrummond.com.br

Homem com fome, o que é comum; sem comida para satisfazer sua fome, o que também não é raro. Aparência modesta, mas digna; barba por fazer; cara de necessidade. Levava uma sacola. Passou pelo restaurante também modesto, com qualquer coisa de simpático — a cor das paredes, talvez — e entrou. Foi direto ao gerente, na caixa:

— Desculpe.... Se lhe disser que há cinco dias eu não como propriamente, só estarei falando verdade. Mas o senhor não vai acreditar.

— Por que não?

— Sinto que é compreensivo.

— Também já passei dias sem levar um bocado à boca, e sei que não é nada divertido.

— Então eu queria lhe pedir...

Não precisou explicar. O gerente chamou o garçom:

— Sirva alguma coisa a esse senhor. Por conta da casa.

E voltou-se para o recém-chegado: 

— Hoje é o meu dia de ajudar o próximo. Aniversário da minha santa mãezinha, que Deus tenha.

O homem sentou-se, comeu lentamente, saboreando o prato simples que uma senhora desconhecida e falecida lhe despachava do céu. Acabando, voltou à caixa:

— Claro que não posso lhe pagar, o amigo sabe. Mas agradecer de coração, isso eu posso.

De nada, ora essa.

Mas não vou embora sem lhe provar de alguma maneira minha gratidão. Tenho aqui uma curiosidade, que o senhor vai apreciar.

Tirou da sacola um piano minúsculo e um ratinho, e disse a este:

— Toque, Evaristo.

Evaristo não se fez de rogado, e executou um trecho de Pour Elise com bastante sensibilidade.

— É fantástico! Exclamou o gerente. Nunca vi coisa igual.

Tem mais. O senhor ainda não viu o meu canarinho.

Surgiu da sacola um canário-da-terra, dócil à convocação.

— Aquela modinha, Sizenando.

Com acompanhamento de piano por Evaristo, Sizenando atacou É a ti, flor do céu, arrancando discreta lágrima do gerente.

— Que beleza! Mas o senhor, não leve a mal eu perguntar, com esse tesouro nas mãos, precisa viver desse jeito?

Ah, meu amigo, não posso, não devo explorar esses inocentes. Como é que iria mercantilizar os dons de Evaristo e do Siza, que considero meus filhos, de tanto que eu gosto deles?

Diante do gerente boquiaberto, o homem retirou-se com a sacola e seu conteúdo. Foi andando pela rua. De repente estacou, preocupado.

Eu não devia ter feito isso com um cara tão generoso, que me matou a fome.

Voltou ao restaurante, onde o gerente o recebeu com surpresa:

— Esqueceu alguma coisa? Não vai me dizer que, cinco minutos depois, está novamente com o estômago vazio? Ou pensou melhor, e quer me vender os dois artistazinhos e mais o pianito?

— Nada disso. Vim por uma questão de consciência. 

— Como disse?

— Questão de consciência. O senhor foi tão legal comigo...

— E daí?

— Daí que eu não tinha o direito de fazer o que fiz.

E que fez o amigo senão me regalar com o seu par de artistas que me fizeram subir água aos olhos?

— Por isso mesmo. O senhor se comoveu com a audição, mas não é justo que continue iludido num ponto fundamental.

— Cada vez percebo menos. Desembuche, homem!

— O seguinte. Eu enganei o senhor. O Siza não canta coisa nenhuma, é um canário bobo, faz aquela figuração toda, mas quem canta mesmo é o Evaristo, que é ventríloquo!

*

Este caso me foi contado por amigo merecedor de crédito, mas fico na dúvida se não será criação de algum escritor, adaptada ao modo de ser carioca. Neste caso, que o autor me perdoe o avanço em sua obra.

 

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