Periódico
Jornal do Brasil

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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A aldeia, o rio deslizando perto, o hipopótamo no rio. Com esses materiais, te contarei um conto. O nome da aldeia não importa. O do rio, também não. O hipopótamo chama-se Malingue.

Que boa figura é Malingue, o sábio. Banha-se com delicadeza, de modo a não afundar as canoas. Não empreende expedições de saque às lavouras. Os hipopótamos nem sempre se distinguem pela gentileza. Este é, porém, um filósofo tranquilo. Há mesmo quem veja nele um deus disfarçado, que teria baixado à Terra para proteger a aldeia, moradores, animais e colheitas.

Estava ele posto sem sossego, tomando sol à margem do rio, quando chegou, para apanhar água, a mulher grávida. Malingue emocionou-se e disse-lhe:

— Querida senhora, és admirável: boa esposa, trabalhadora, honesta. Vais ter uma filha, eu sei. Quero que ela seja minha amiga, pois da amizade que tivermos dependerão a sorte da aldeia e minha atitude perante os homens.

— Topo — disse a boa mulher — sob condição de que não haja casamento. Vocês se comportarão como dois manos. Tá?

— Não pretendo outra coisa.

Semanas depois, nasce a menina, e vai crescendo mais veloz do que pé de milho, bela como arrozal ao luar. A mãe leva-a para a margem do rio, apresenta-a a Malingue, e os três quebram juntos as nozes da amizade perfeita.

O broto gosta imediatamente da cara e estilo do hipopótamo, e começa um entendimento lindo entre os dois. São crianças travessas a se banharem de mãos dadas. E riem, brincam. Ela faz-lhe cócegas nas ventas. Ele passeia com ela no palanquim da boca, entre dentes de 70 centímetros. Sem erotismo. O arraial fica mais feliz, os campos de arroz e as plantações de bananeira prosperam mais, sob o influxo dessa amizade.

Não obstante, o puro contrato inspira dúvidas maliciosas. Não é vulgar moça ser amiga de hipopótamo. Não está direito, murmuram os murmuradores. E começam a ser esquecidos os bons serviços de Malingue à comunidade, para se enxergar nele um sátiro. Tanto não havia nada de mal entre os dois, que a moça, no intervalo, ficara noiva de um caçador. Isso não prova nada, retrucavam os fofoqueiros: pior para o caçador. Este, de muito escutar o que se boquejava, acabou enchendo. Pegou do fuzil e foi à casa da feiticeira, na mata (aqui, preciso de uma feiticeira diplomada, para movimentar o conto):

— Quero que a senhora me fabrique uma bala mágica, de matar hipopótamo. Chumbo comum não resolve.

Provido do elemento fulminante, o noivo aproxima-se de Malingue e, sem aviso prévio, desfecha-lhe um tiro no coração. O santo animal solta um grito hipopotâmico, que faz morrerem de susto os peixes e os pássaros, e reboa pelas cavernas. O sangue jorra da enorme abertura e tinge as águas de um vermelho incomparável. Do céu, baixa uma chuva sem precedentes, que, ao tocar o solo, se converte em mar de sangue. A moça, alucinada, acode para assistir à morte magnífica do hipopótamo. E lamenta-se:

— Por que nasci mulher? Se tivesse nascido outra coisa, Malingue estaria vivo, seríamos amigos para sempre...

Não pôde falar mais do que isso. As águas embrulharam a terra numa capa de extermínio, e a jovem, a mãe da jovem, o noivo facinoroso, a população inteira, os animais, foram aniquilados. De vivo, só restou a perdiz, que sabia do pacto de amizade entre Malingue e a moça, e não o ratificara. Voou para o país de deus-me-livre e, durante o voo, cantava que nem os deuses devem confiar nos homens. Até hoje a perdiz prefere morrer de fome a domesticar-se.

Mas o conto não é meu — devo confessar-te — é da Guiná, e saiu no boletim Informations, da UNESCO. A moralidade de origem é a que foi cantada pela perdiz. Haverá outra: moça prevenida não faz amizade com hipopótamo — mesmo que seja um deus disfarçado. Ou principalmente se.

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