Imagens do Rio

A hora em que estas mal traçadas estiverem circulando, 32 colibris serão lançados em pontos-chave da cidade, para início da campanha de retorno do colibri, e com este retorno creio que todos estarão de acordo. Não serão lançados ao deus-dará, nos jardins públicos, mas em parques de residências selecionadas, onde terão melhor agasalho. Vi a nominata dos cavalheiros incumbidos de hospedar os beija-flores, e só faço duas restrições. Uma, com relação ao sr. Kubitschek, morador nas laranjeiras, não porque não mereça o seu beija-flor, mas porque viajando dia e noite não terá tempo de cuidar dele. Já o beija-flor em casa do dr. Moses, parece demais, sabendo-se que o presidente da A.B.J. não tem sido outra coisa, e que palpitante!

Num speech, o sr. Chateaubriand recorda com poética nostalgia o tempo em que os cariocas, descendo do tílburi, eram saudados por beija-flores, que lhes pousavam nos ombros. A mim, beija-flor algum jamais me pousou no ombro, mas não custa sonhar este sonho: um Rio de Janeiro futuro em que cada criatura feliz ou infeliz tenha a seu dispor um passarinho particular, encarregado de cumprimentá-la nas diversas horas de sua obrigação e de convidá-la a sentir a vida verdadeira, em que não reparamos.

Encontrando ontem um colibri de minhas relações, refugiado em casa de Gastão Cruls, no Alto do Boa Vista, perguntei-lhe o que pensava do retorno da espécie ao Rio e notei o seu ceticismo.

— O Augusto Ruschi é uma grande praça, e dá gosto viver no sítio dele, no Espírito Santo. Trabalhamos com prazer, na reprodução de orquídeas e até como pombos-correio, porque o homem nos ama, e lá o mundo é realmente um jardim. O Rio é atualmente o contrário de um jardim. E tenho medo de que os particulares, esmagados pela nova tarifa postal, peguem a gente para levar cartas sem selo. Já pensou nisso? 

Depois, pelo miúdo, o beija-flor explicou-me que para recolocar seus irmãos na vegetação carioca, era necessário antes de mais nada recolocar a vegetação. Cadê? Os passarinhos são exigentes, e não topam fumaça de ônibus: seria preciso acabar com os ônibus, já que não se pode acabar com a fumaça. E as buzinas, os estouros, as complicações do tráfego, tudo isso que transforma as ruas do Rio em caminhos infernais, também afugenta os colibris e quaisquer outras aves, para onde existir e louvar o Senhor seja menos perigoso.

Uma razão ele omitiu, e intuí que o fazia por pudor. Os colibris não são meros filantes do mel das flores, como parecem. São antes comedores de insetos, e o seu longo bico tem a finalidade de caçar vermezinhos nas corolas mais profundas. Numa cidade em que cada dia se come menos, por falta de alimento acessível, é de temer que não sobre nada para beija-flores, nem insetos, que amanhã serão talvez disputados com energia pela espécie humana. Outro risco é o de serem os próprios colibris comidos sumariamente, e a carne deles há de saber a raio de sol, brisa e alvorecer.

Que eles são valentes como as armas, dizem os observadores de natureza, mas pouco pode a fibra de uma ave contra um tempo sem aves. Em todo caso, é um começo de reumatização da vida urbana, que se tenta com essa volta de uma ave pequenina às poucas casas onde há jardim ou quintal. Muitos de nós, sob a aparência de vida, estávamos mortos e sepultados. É possível que ressuscitemos a essa vibração de asas minúsculas e luminosas, e verifiquemos: Meu Deus, a vida existe!

carlos-drummond-de-andrade
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