A literatura ucraniana, rica de tradição culta e popular, está na situação da andorinha de um conto de Mykola Khvylovy. Ou na situação do próprio Khvylovy? Livre de asas e projetos, a andorinha voa sobre o caminho interminável, um caminho que segue para o desconhecido. Súbito, escurece. Tempestade. Aflita, em busca de luz, a andorinha vai ter a um salão, choca-se contra o teto, bate no tapete, prende-se num vaso de porcelana, tenta sair pela janela. Não há janela. E morre.

Por falta de janelas, o romancista ucraniano Khvylovy, membro do Partido Comunista local, mas desejoso de manter vivas a língua e a literatura de seu povo (cerca de 45 milhões de pessoas), suicidou-se aos 40 anos de idade.

Este, o drama cultural da Ucrânia, de resto sem novidade. O poeta Chevtchenko, a maior figura literária do país no século XIX, curtiu 10 anos de deportação, proibido de escrever e de pintar, sob o regime imperial russo. Já no século anterior, Pedro, o Grande vedava a publicação de livros em ucraniano, salvo os de matéria religiosa, naturalmente apologéticos. Quando o Governo soviético procura substituir, na Ucrânia, a língua nacional pela língua russa, extinguindo assim o traço mais típico da literatura, aquele que lhe dá colorido e som especiais, repete uma velha manobra de anulação psicológica, sob pretexto de integração. A andorinha já morreu muitas vezes. Mas ressuscita.

E voa até o Brasil, onde a acolhemos na pessoa de Wira Selanski. É preciso conhecer Wira, estimá-la, tributar-lhe gratidão. Pois não trouxe apenas na bagagem sua cultura pessoal e sua cultura nacional, como bens a distribuir, que aliás vem distribuindo generosamente. Poeta, romancista, autora teatral, professora de Teoria da Literatura na PUC e de Literatura Comparada na Faculdade Santa Úrsula, os alunos adoram-na. Mas seu trabalho não consiste apenas em preparar estudantes e contar-nos dos valores intelectuais de sua terra. Wira Selanski (em literatura, Wira Wowk) é também a andorinha interessada em levar aos ucranianos nossos poetas modernos, Bandeira, Osvald de Andrade, Cecília Meireles, Vinicius, outros. Suas versões, que não são meras transposições literais, pois no caso a poesia é filtrada por um poeta de categoria, aparecem em revistas de língua ucraniana espalhadas pelo mundo: Estados Unidos, Canadá, Austrália.

Wira faz isto discretamente e a discrição envolve em penumbra seu trabalho de muito amor às letras brasileiras. Quantos brasileiros cultos a conhecem, fora do pequeno círculo — professores, alunos, alguns intelectuais? Vejo-a anônima, extasiada, vivendo uma hora de sol no Jardim Botânico e recolhendo em verso o choque cromático de sensações:

“Dança de cipós e explosões de agaves 
(é a alvorada do Paraíso). 
Palmeiras, leques da manhã, 
abanam a brasa das flores. 

Estalactites cor de cera 
— chuva de ouro — gotejam na eterni
                                                            [dade. 
Gladíolo, espada de arcanjo, cega ao
                                                               [sol. 
Feras de sombra emolduram o silêncio
                                                             [verde, 
o estreito riacho entre os íris 
quebra-se em mil ametistas. 
Somos os primeiros seres, vestidos de
                                                              [folhas 
em formas ricas”.

Wira acaba de publicar duas antologias de contos ucranianos: A canoa no mar, da geração mais antiga, e Galos bordados, do pessoal moderno. O título deste último é tirado a uma história de amor canhestro, de Vassyl Symonenko. O rapaz e a moça amavam-se e não sabiam como entender-se; ficaram sentados longo tempo, mudos, no banco. Mas “nas toalhas, os galos bordados cantavam, e o canto silencioso ressoava em seus ouvidos”.

A andorinha migrante leva consigo a imagem da Ucrânia. Não vai perecer. E na Ucrânia, quem tiver o ouvido afiado e a alma sensível, perceberá que até os galos bordados cantam, em silêncio.

carlos-drummond-de-andrade
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