É uma galeria de arte pela qual você passa obrigatoriamente, se tiver de procurar alguém no edifício de apartamentos: instalou-se no hall de entrada, longo corredor em dois níveis, com paredes laterais forradas de quadros. Nestes, o acadêmico vizinha com o moderno, ou pretensamente moderno, mas exercendo predomínio evidente sobre os dois últimos. Aglomeradas com preocupação de não perder um centímetro de espaço, telas e mais telas envolvem o passante, que mesmo sem intenção ou gosto de contemplar pintura, recebe de chapa um banho de cores. Assim a arte entra nos olhos dos distraídos e dos ignorantes.

Ao fundo, a mesa do dono, senhor de idade, naturalmente silencioso, pois não irá puxar conversa com quem, apressado, se dirige ao elevador e está a mil léguas da ideia de comprar quadro. Sentado está, sentado fica, até que um visitante atraído pelo cardume de quadros, esboça desejo de saber o preço daquela marinha, daquele nu ou daquela cara de preto velho. (Preto velho dá muito em pintura convencional). Uma cadeira suplementar facilita o diálogo. Que às vezes não é de negócio, ou, mesmo sendo, deriva para a rememoração.

Há quantos anos dura esse casamento de arte e passagem? Muitos. Tempo bastante para acontecerem coisas, mudarem coisas, coisas serem esquecidas. O dono lembra-se de ter vendido por 40 mil réis muita obra que mais tarde chamaria atenção pela assinatura famosa. Portinari, uma delas. Era um moço pintor desconhecido, como tantos outros — e olhe que 40 mil réis, àquele tempo, não era dinheiro que se desprezasse.

A figura de Candinho de Brodósqui emerge das recordações:

— Um dia eu estava aí, conversando com ele, que me trouxera um quadro novo. Ficaria em exposição, à espera de comprador. Nisso entra um bando de meninos, e um deles me pergunta: “Moço, quer fazer uma vaquinha?”, “Que negócio é esse de vaquinha?”, indaguei. Ele então me explicou que a turma estava precisando de um dinheirinho para comprar não sei o que (não me lembro mais) e se todos ajudassem a coisa estaria resolvida a contento. Tirei um níquel da algibeira e dei. Aí o garoto virou-se para Portinari e repetiu a pergunta: “Quer fazer uma vaquinha”? Acho que ele não estava em condições de atender ao pedido; só devia ter o dinheiro justo para a passagem de volta, no bonde. O certo é que Portinari me pediu um pedaço de papel, e mais que depressa desenhou nele uma vaquinha, assinou e estendeu ao garoto. “Ah, é isso?”, exclamou o menino, e virou as costas. A turma saiu, eu peguei no papel e botei em cima da mesa. Mais exatamente: botei dentro de um livro que estava na mesa, e que depois levei para casa.

A lembrança continua a ser desfiada:

— Nem pensei mais nisso. O tempo rolou. Foi rolando. E Portinari ganhando fama no Brasil, nos Estados Unidos, em Israel. Eu já não recebia mais quadros dele para vender, é claro. Pois não é que depois de muitos anos, abro o tal livro por acaso e encontro o desenho da vaquinha, do qual nem me lembrava mais? Foi fácil vendê-lo por Cr$ 8 mil. Uma vaquinha desenhada num pedaço de papel que os garotos não quiseram levar porque não valia o meu níquel de 200 réis.

A galeria está cheia de quadros e de recordações. A sombra — a sombra não, a figura pequena e luminosa de Portinari é como se estivesse ali, de novo, tentando agradar a uma criança que lhe pedia alguma coisa que ele não tinha — pois o que tinha era muito mais do que fora pedido: o artista dava-se a si mesmo.

carlos-drummond-de-andrade
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